Opinião

Escassez intelectual na cozinha

Não é adequado falar de alimentos e alimentação sem levar em conta antes o grande avanço da humanidade antes mesmo da invenção da agricultura a cerca de 11.000 anos, o cozimento dos alimentos. O ser humano se diferencia dos demais seres vivos porque cozinha sua comida. Enquanto outros onívoros evitam alimentos muito duros e preferem frutas e carnes macias (como os miúdos de outros animais) o homem conseguiu seu desenvolvimento intelectual a partir do ponto na história que o fogo foi domesticado e utilizado para além da função de fornecer luz, calor e proteção contra feras, e foi direcionado com a finalidade de preparar os alimentos.

Estruturas do corpo como a dentição e comprimento do intestino, que faz a absorção dos nutrientes, são adaptados a alimentação cozida. Após cozido o alimento se tornou mais macio e de mais fácil digestão, forneceu prontamente mais calorias e mais nutrientes ao corpo. A alimentação cozida resultou em melhor condicionamento do organismo pela melhor nutrição deste, e proporcionou crescimento em estatura óssea e muscular, e também causou o aumentou o volume do cérebro com consequente aumento da capacidade física e intelectual, e nos trouxe progressivamente até o nosso desenvolvimento atual.

O uso de utensílios e eletrodomésticos com o objetivo de facilitar essa nova forma de dieta tiveram grandes evoluções principalmente nos últimos 120 anos. O aperfeiçoamento do local de preparo dos alimentos também mudou bastante nesse decorrer de tempo até se tornar o que é hoje a nossa cozinha.

Do passado enfumaçado às cozinhas gourmet atuais

Saindo, no século retrasado, do uso dos antigos utensílios como pilão, panelas de ferro, vasilhas de porcelana e cobre, usados em fogões de barro alimentados com lenha, junto com outros utensílios de madeira e pedra, a “cozinha” com tetos enegrecidos pela fumaça, sem paredes ou chaminé para exaustão, era na verdade um anexo externo e quente da casa, reservado unicamente aos criados. Esse espaço de preparo evoluiu com novos objetos e arquitetura. Da copa-cozinha da década de 1950 passando pela cozinha americana na década de 1980, chegamos às atuais e modernas estruturas, arranjos e equipamentos eletrônicos e tecnológicos com programação automática e avisos eletrônicos. Foram décadas de desenvolvimento com aumento progressivo do comodismo e praticidade para os usuários do ambiente, até se tornarem hoje em dia espaços úteis, modernos e motivo de orgulho para seus donos.

Máquinas e aparelhos fruto das inovações que vieram a rebote dos equipamentos industriais, que surgiram no século XIX na revolução industrial, incluem novos materiais para utensílios como alumínio, aço-inox, porcelana e vidro, e máquinas e equipamentos elétricos como: fogões, liquidificadores, geladeiras, batedeiras, máquinas de lavar louça, exaustores, multiprocessadores e fornos micro-ondas. Outras partes da casa também foram beneficiadas com as inovações, que vieram trazendo variedades de uso e baixando os preços pela sua produção em massa. Ferros de passar, aspiradores de pó, barbeadores elétricos, rádios, TVs.

A quase totalidade desses aparelhos citados foram inventados e produzidos em grande escala nos Estados Unidos, e chegaram ao Brasil com o crescimento das cidades, juntamente com o fornecimento e popularização da energia elétrica a partir da década de 1920. Os equipamentos movidos a essa nova energia disponível ajudaram enormemente a vida doméstica, liberando dos trabalhos domésticos repetitivos e pesados que ficaram parcialmente ou totalmente a cargo das máquinas, permitindo economia de tempo e energia nas tarefas e facilitando a vida dos trabalhadores domésticos e também de outros empregados no setor de serviços como em hotéis, lavanderias, tinturarias e restaurantes.

Nossa indústria mal acostumada

Os aparelhos elétricos e automáticos chegavam às casas primeiramente importados, mais tarde foram lentamente popularizados nas vidas dos brasileiros quando começaram a ser produzidas no país. Mas o protecionismo histórico do estado brasileiro, presente desde o governo de Dom João VI, a favor da indústria nacional, atrasou em muito a chegada das novidades e dos benefícios proporcionados por eles.

Quando a geladeira elétrica chegou ao Brasil, 1 milhão delas já haviam sido vendidas nos Estados Unidos só pela fabricante GE, e oito anos antes dessa chegada, 200 marcas de geladeiras diferentes eram comercializadas na América, também, no mesmo ano de 1931, 45% das residências americanas já possuíam aparelhos de rádio. O fogão a gás só começou basicamente no nosso país em 1957 quando a estatal Petrobrás, à época dona do monopólio de exploração do Petróleo, iniciou a produção do gás de cozinha, também conhecido como GLP, na refinaria de Cubatão, mesmo tendo sido o petróleo descoberto em território nacional no ano de 1939.

Para termos uma ideia dessa disparidade de tempo, compare abaixo os anos de invenção e utilização dos mais comuns eletrodomésticos de cozinha e do lar em geral.

Ano de Invenção/utilização doméstica*Chegada nas residências no Brasil**Lapso de tempo
Aparelhos de radio19101947 (Philips)37 anos
Ar-condicionado domiciliar1924197046 anos
Aspirador de pó doméstico portátil19011957 (Walita)56 anos
Barbeador elétrico19391956 (Philips)17 anos
Batedeira1916193620 anos
Cafeteira elétrica19651978 (Melita)13 anos
Ferro de passar1926Anos 5025 anos
Fogão a gás com queimador19231957 (Dako)34 anos
Forno Micro-ondas19461985 39 anos
Geladeira elétrica19101933 (Bosh)23 anos
Lavador de louças19131977 (Brastemp)64 anos
Liquidificador19221944 (Walita)22 anos
Máquina de costura18301858 (Singer)28 anos
Máquina de lavar roupas19081959 (Brastemp)51 anos
Multiprocessador1930198656 anos
Secador de cabelos portátil19151988 (Taiff)73 anos
Secador de roupas19151965 (Brastemp)50 anos
Ventilador1910194535 anos
*Os anos da segunda coluna são correspondentes ao ano de invenção ou ao ano que se iniciou a sua comercialização no país de origem.
**A terceira coluna corresponde ao ano que o eletrodoméstico chegou ao Brasil por importação ou ao ano em que se iniciou a sua produção nacional, e entre parênteses o nome da marca da primeira fabricante no Brasil.

Em poucos momentos históricos do Brasil houve liberdade de comércio para produtos do exterior, que mesmo de curto prazo, beneficiaram muito a maior parte da população com melhores produtos e mais opções de compra além dos produtos nacionais. Mas essas aberturas significativas foram somente “soluços” de livre mercado, e logo foram suplantados por novas restrições protecionistas.

Podemos destacar os casos da Abertura dos Portos as Nações Amigas, feita por D. João VI permitindo produtos vindos da Inglaterra (tecidos de algodão, cordas, pregos, martelos, serrotes, fivelas de arreios e ferragens em geral); a abertura para as importações vindas da América em 1946 no governo de Gaspar Dutra (quando chegaram: ferragens, papel para livros, carros, geladeiras, cigarros, perfumes, brinquedos); e a revogação, feita por Collor em 1989, da legislação de produtos com restrições de importação (permitindo importações de carros, máquinas agrícolas, eletrônicos e informática).

Debate na cozinha

Os utensílios da cozinha e os avanços dos ambientes domésticos são tão relevantes na evolução da sociedade que até já foram motivo de disputas na comparação de sistemas econômicos no século XX, como aconteceu na exibição ocorrida em 1959 em Moscou. Organizada pelo governo americano, em plena Guerra Fria, a American National Exhibition mostrava exemplos do modelo de vida capitalista com os mais variados e modernos produtos para o lar, lazer e agricultura, que proporcionavam conforto e produtividade aos trabalhadores americanos, em total contraste com o que existia na antiga União Soviética.

Nessa exposição o líder soviético Kruchov e o vice-presidente americano Nixon trocavam provocações enquanto andavam pelos stands contendo as maravilhas da tecnologia moderna americana disponíveis para as residências dos americanos, tudo sob o olhar admirado, mas disfarçado e desdenhoso do líder russo. O encontro entre os dois e seus diálogos durante a exposição foram registrados pela imprensa e chamado de The Kitchen Debate (Debate na cozinha).

Protecionismo e carência

Durante o governo militar o protecionismo se acentuou. Uma das causas foi o afastamento das relações entre Estados Unidos e Brasil após o governo do general Castelo Branco. Em 1976 a criação da lista de produtos com importação proibida atrasou muito a modernização da indústria e a chegada do bem-estar tecnológico nas casas brasileiras. “Novidades” como o micro-ondas só foi conhecido pelos brasileiros 40 anos após a sua invenção. Também o avanço da informática foi impediu, e a chegada e popularização do computador pessoal ocorreu tão atrasada que ficamos entre os últimos países do mundo a ter esse equipamento em casa. O protecionismo é extremamente prejudicial e nocivo à esmagadora maioria da população (e só benéfico aos governos e aos poucos “amigos do rei” que conseguem proteções e regalias do estado desenvolvimentista), mas existe o estágio mais avançado do controle estatal, que é ainda pior.

O sistema socialista, ou as medidas a caminho do socialismo, que se forma com um estado gigante e controlador, é o inferno na terra para a população comum. Nesse relato, extraído do livro A história Politicamente Incorreta da América Latina, do jornalista Leandro Narloch, uma família chilena, que conseguiu escapar a tempo do governo de Salvado Allende em 1973, vemos a diferença entre o bem-estar na vida de uma família sob o socialismo no Chile até mesmo quando comparada a um governo com forte política protecionista como o governo militar do Brasil na época.

“Os funcionários das fábricas nacionalizadas, que passaram a ser donos das empresas onde trabalhavam, levavam peças e produtos para suas casas. Como não havia mais hierarquia nas indústrias, e todos eram companheiros, não havia mais quem pudesse censurar os desvios do outro. Então, eles anunciavam os seus produtos nos jornais. Quem queria comprar uma geladeira ou um aspirador, por exemplo, tinha de ir até a casa desses funcionários que estavam vendendo os produtos,(…)”

“A grande maioria dos socialistas tinha acesso especial à comida. Enquanto eu pegava fila para comprar um pedacinho de carne pequeno para fazer sopa para minhas crianças, meu vizinho do lado fazia churrasco. Ele era do governo, do partido.”

“Meu chefe me ofereceu um emprego no Rio de Janeiro, e minha mulher aceitou a ideia na hora. Pegamos os três nenês e embarcamos para o Brasil em 1973. Quando chegamos, eu e minha mulher ficamos meia hora olhando aquele prédio da Sears, em Botafogo, com andares cheios de produtos. Tinha bateria de carro. No Chile, não tinha nada, e eu tinha ficado oito meses para conseguir comprar uma bateria pro meu carro pequenininho. E tinha mais um monte de coisas. Tinha pneu. Uma beleza. Geladeira. Máquina de lavar roupa. Ferro de passar. No Brasil tinha de tudo. No Chile não tinha nada.”

O argumento comumente ouvido de formadores de opinião que dão entrevistas escrevem em jornais, livros e ensinam em universidades é que as pessoas compram coisas desnecessárias devido a cultura do consumismo própria do capitalismo. Esse preconceito dos intelectuais contra a livre concorrência e contra a liberdade de escolha dos outros não se confirma na realidade, pois ela só existe nos ambientes cultos e acadêmicos dos amantes do socialismo.

Os exemplos históricos confirmam que longe de agir condicionadamente e por impulso o consumidor comum sabe fazer racionalmente suas escolhas. Por exemplo, a citada abertura dos portos por D. João VI em 1808, concessão, sim, feita de Portugal para os produtos da Inglaterra (que sofria para exportar devido ao bloqueio continental de Napoleão), trouxe muitos equipamentos e ferramentas a preços acessíveis e necessários ao trabalho dos brasileiros à época, inclusive coisas aparentemente inúteis, de tão baratas, eram compradas e adaptados para usos mais práticos e transformados em utensílios úteis, como os tecidos de lã que viraram instrumento usado na mineração e os patins de gelo, que foram pregados em portas como maçanetas, ou se tornando lâminas e ferraduras.

Outra evidência foram os eletrodomésticos que não pegaram no Brasil, ou não foram prontamente comercializados por falta de demanda, como a chaleira elétrica, percolador elétrico de café, chapa de waffle, abridor de latas elétrico, triturador de restos de alimentos ou aquecedores. Por outro lado, equipamentos como chuveiro elétrico são próprios do Brasil e basicamente só existe aqui, e mesmo depois do lançamento dos fogões a gás a produção de fogões a lenha continuou pelas mesmas empresas produtoras porque ainda existia a demanda que devia ser atendida.

Melhorias e aperfeiçoamentos de equipamentos já existentes também são bem vindos. Somente quem nunca enfrentou uma pia cheia de louça para lavar e secar, um tanque com roupa ou uma casa suja pode imaginar que é desnecessário existir máquinas de lavar maiores e mais eficientes, lavadoras automáticas e aspiradores de pó mais práticos e leves, e julgar que esses são simples fetiches burgueses do capitalismo. Essa visão estreita e limitada de mentes ideológicas não percebe a economia de tempo e esforço além da prevenção de fadiga, mãos machucadas, dores e problemas nas costas do trabalhador de verdade.

Escassez, sinônimo: socialismo

Sob o socialismo, que evolui em direção ao comunismo, sempre a mesma regra de escassez se repetiu em todos os países como no caso pioneiro da União Soviética, independente da forma de como chegaram lá, se se tornaram socialistas pelo voto ou pela revolução. O resultado do fechamento da economia e controle estatal dos bens se repetiu em todos os países que seguiram a mãe Rússia, como China, Cuba, Chile, países do leste europeu e Venezuela atual. O mesmo jornalista Leandro Narloch escreve no seu livro A história politicamente incorreta do mundo,

(…) todos os regimes comunistas resultaram em quedas da colheita, prateleiras vazias, falta de produtos básicos, atrasos em serviços, cartões de racionamento e promessas do governo dizendo que o desabastecimento iria acabar em breve. Essa carestia gerou uma abundância – de piadas.

Como a do homem que vai comprar um carro numa loja em Moscou e, depois de pagar o combinado, pergunta ao vendedor quando receberá o automóvel. O vendedor consulta suas listas e informa que será um dia dali a dez anos. O comprador pensa um pouco e replica: – De manhã ou à tarde? – Que diferença faz? – pergunta o vendedor estupefato. – É que o encanador marcou de aparecer pela manhã.

Referências:

Wrangham, Richard. Pegando fogo – Porque cozinhar nos tornou humanos. Ed. Zahar. Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: 2010.

Narloch, Leandro. Guia politicamente incorreto da América Latina. Editora Leya. São Paulo: 2011. 336 p.

Narloch, Leandro. Guia politicamente incorreto da economia brasileira. Editora Leya. São Paulo: 2015.

Pinho, Flávia. Em imagens: a história da cozinha no brasil. Revista Aventuras na História. Edição de 10 de agosto de 2017. Disponível em: <https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/ galeria/em-imagens-a-historia-da-cozinha-no-brasil.phtml#galeria>

Pinho, Flávia. Da Brasa ao Microondas: A Cozinha no Brasil. Publicado em 01/09/2007. Disponível em: <https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/acervo/brasa-ao-microondas-cozinha-brasil-435532.phtml&gt;

A Brief History of the Kitchen. Disponível em: <https://porch.com/advice/brief-history-kitchen>

What Came First? Electric Appliances Timeline. Disponível em: https://www.announcingit. com/invitations – blog/what-came-first-electric-appliances-timeline/>

Especial Utensílios de Cozinha: A História. Disponível em: http://blog.spicy.com.br/especial-utensilios-de-cozinha-a-historia/

Primeiros Passos. Especial Utensílios de Cozinha: A História. 2 de setembro de 2014.Disponível em: http://blog.spicy.com.br/especial-utensilios-de-cozinha-a-historia/>

The History of Kitchen Appliance Inventions. https://www.thoughtco.com/history-of-kitchen-appliance-inventions-1992036>

The American National Exhibition, Moscow 1959. Disponível em: https://picryl.com/collections/american-national-exhibition-moscow-ussr-1959>

A brief history of the kitchen. Disponível em:https://porch.com/advice/brief-history-kitchen>

A Brief History of Kitchen Design, Part 2: Gas & Water. Disponível em: https://www.core77.com/posts/19773/a-brief-history-of-kitchen-design-part-2-gas-water-19773&gt;

A História e evolução da máquina de costura. Disponível em: https://coopermiti.com.br/museu/a-historia-e-evolucao-da-maquina-de-costura/>

Bosh eletrodomésticos. Disponível em: http://www.portaldoeletrodomestico.com.br/bosch.htm>

Soviet National Exhibition in New York City. Disponível em: https://kcmeesha.com/2012/04/08/ soviet-national-exhibition-in-new-york-city/>

American national exhibition em Moscow. Disponível em: https://picryl.com/collections/american-national-exhibition-moscow-ussr-1959

Gomes, Laurentino. 1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil. Editora Planeta do Brasil. São Paulo: 2007.

 

PFernandes

Colunista associado para o Brasil em Duna Press Jornal e Magazine, reportando os assuntos e informações sobre atualidades sócio-políticas e econômicas da região.

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