ArteOpinião

Outubro rosa, novembro azul

O governo criou há alguns anos a campanha contra o câncer de mama e de próstata, respectivamente nos meses de Outubro e Novembro, mas eu nunca entendi bem por que associar o rosa e o azul, cores tradicionalmente femininas e masculinas, a uma doença tão terrível, cujo nome muitos se recusam a pronunciar. Achei a explicação e a inspiração no quadro de Pierre Auguste Renoir, “As Meninas Cahen d’Anvers”, também conhecido como “Rosa e Azul”, atualmente parte do acervo do MASP, e vale certamente uma visita.

Porém, a título de contribuição para que lancemos um outro olhar, ou uma nova leitura sobre o câncer, antes de falar da obra de arte, faço um convite para que você acompanhe um pouco da minha trajetória para vencer essa doença com otimismo e alegria. Em setembro de 2018 fez 10 anos que descobri ser portadora de um tumor maligno no seio esquerdo. Parabéns!

Eu tinha acabado de dirigir e estrear o espetáculo solo “O Sermão do Bom Ladrão”, com o ator e amigo Adilson Azevedo, uma peça teatral com patrocínio do Ministério da Cultura para uma turnê em Portugal, depois da estreia no Pateo do Collegio, em São Paulo, e outras apresentações pelo Brasil, em virtude dos 400 anos de comemoração de nascimento de Padre António Vieira. Tudo ia bem, inclusive meu mestrado, quando tive o diagnóstico de um tumor maligno no seio esquerdo, de proporções preocupantes, o que obrigaria meu afastamento de todas as atividades para fazer quimioterapia adjuvante, isto é, sessões de transfusão química para extirpar as células cancerígenas do corpo antes da cirurgia para retirada total da mama esquerda.

Chorei ao receber o diagnóstico que meu médico e amigo dr. Sandro Hilário me deu ao abrir o exame da biópsia. Ele e meu companheiro, na época, me deram seu ombro e foram enfáticos:”Isto não é uma sentença de morte, mas um convite para o tratamento que começa agora!”. Dia seguinte eu estava na clínica para a primeira das nove sessões de quimioterapia, às quais se seguiram mais 28 de radioterapia, mastectomia, esterectomia (já que foram detectados também tumores no útero e ovário) muitas cirurgias plásticas e quatro anos de hormonioterapia. Sem entrar em detalhes sobre as agruras e sofrimentos , entre 2008 e 2013, além das alopecias, formigamentos e dores que me levaram a andar de cadeira de rodas, perdi meu pai e minha mãe. Não tinha amparo de previdência social e trabalhei do primeiro ao último dia, com ânimo e persistência.

Durante o processo, meus dois filhos, um com oito, outro com 17 anos na época, assim como familiares e amigos, médicos, enfermeiras, terapeutas, colegas de trabalho, todos estiveram a meu lado. Tive também o apoio mais importante e essencial para minha cura: A fé em Deus, que me permitiu este tempo extra para cumprir a missão que Ele sussurra a meus ouvidos nos momentos de oração e exercício espiritual, todas as noites, todos os dias. Isso é que é trabalho de equipe!

Nas orações que fizeram por mim, e eu agradeço a todos por isso, sei que pediram pela minha sobrevivência, pela minha saúde. Nas que fiz a Deus e Nossa Senhora, eu só agradecia pela oportunidade, pelo tempo passado e presente e pedia que se fizesse a vontade dEle.  Esse pensamento desprendido da vida foi responsável pela clareza e pelo ânimo em prosseguir meu trabalho, inclusive cumprindo os compromissos de viagens, sempre com entusiasmo e alegria. Depressão passou longe.

Agora retomo o assunto do quadro de Renoir, “Rosa e Azul”. Se você reparar na perspectiva artística de Renoir, vai perceber que sua obra, em geral, tem como tema sempre uma atividade a ser compartilhada: Seja a leitura de um livro, o momento de tocar música ao piano ou de passear no parque. As pessoas nunca estão sós, mas dividindo os momentos felizes com alguém próximo, ou com outras pessoas ao redor, reconhecendo o momento fugaz de prazer e o sentido de partilhá-lo com o outro, para o bem de algo maior – a permanência da eternidade -, que é o próprio sentido da Arte. Parece contra-senso referir-se a esse sentido em um mundo pautado pelo relativismo e leitura fácil da baixa cultura. Só se vive em paz diante da efemeridade das coisas com a certeza na eternidade da alma; então, estar vivo é o bônus.

As duas meninas de mãos dadas, uma de rosa, outra de azul, estão compartilhando um momento de intimidade, mas têm posturas corporais diferentes para olhar o espectador. A de rosa mira diretamente, quase se inclinando para a frente, embora sob uma perspectiva de segundo plano, pois está atrás de sua irmã. A de azul, com o torso de lado, vê quem está fora do quadro de esgueira, de forma que não importe onde esteja, seu olhar sempre segue o espectador. Trata-se de uma técnica bem conhecida e nesse contexto a irmã de azul assume uma aura de proteção, inclusive ao dar as mãos à irmã mais nova, discretamente. Apesar da diferença de idade, estão juntas para desempenhar o que lhes for proposto, seja uma brincadeira ou uma tarefa escolar. A união as faz fortes com suas delicadezas sutis, com seus vestidos de babado e laços infantis.

Assim como o Homem e a Mulher, o azul e o rosa unem-se para combater essa doença inexplicável, o câncer de mama ou de próstata, que considero hoje um presente de Deus para que eu pudesse crescer individualmente e na relação com outras pessoas. Muitos não conseguiram, pois mesmo aparentando saúde, tiveram recaídas e morreram após alguns meses ou anos.

Quando sabem de minha cura e veem como levo vida normal e sinceramente feliz depois de ter enfrentado o câncer de mama, amigos e parentes de pacientes me pedem uma palavra de motivação, e sempre estou disposta a uma visita ou bate-papo. Vou deixar aqui algumas dicas que sempre repito, pois podem ser úteis:

  1. Esqueça esse negócio de auto-exame. Quando você tocar em um caroço no seio, será muito tarde. Faça mamografia frequentemente e ao menor sinal de anormalidade, corra para o mastologista.
  2. Se você receber o diagnóstico de tumor maligno, mantenha a tranquilidade para falar com filhos, pais e parentes próximos. Não é sentença de morte e o sofrimento para eles será imenso a depender de suas palavras.
  3. Reorganize sua vida para estar com os outros, mas independente deles. As sessões de quimioterapia não precisam necessariamente de companhia.
  4. Perder os cabelos não é o fim do mundo. Use lenços coloridos e perucas diferentes. Vai passar.
  5. Volte ao dentista. Esse é o momento.
  6. Programe sua rotina para descansar em casa cerca de seis dias depois de cada sessão de quimioterapia, é quando as dores são mais intensas. Tome remédio contra enjoo. Peça a seu médico.
  7. Se possível, não pare de trabalhar. Continue sua rotina profissional e doméstica, mesmo que em ritmo mais lento.
  8. Procure seus direitos como paciente oncológica. Leia e pesquise as leis que nos protegem e amparam.
  9. Retome a vida em família e aproveite para perdoar e ser perdoado por qualquer que tenha sido a falta. Zere a relação com parentes e amigos com quem você tenha tido problemas.
  10. Retome a vida espiritual. Não porque Deus pode ser a salvação de sua vida, mas porque ele é a salvação da alma. Busque a sua comunidade, volte às orações, à missa, ao culto, ao mistério.

No meio do acervo do MASP, entre os impressionistas franceses com suas paisagens e retratos, desponta o pequeno quadro das meninas de Renoir. Desafiam nosso olhar para compreender a natureza do homem imortal em sua obra e finito em sua existência. Façamos destes dois meses um momento para refletir sobre nosso papel diante do outro e de que modo podemos compartilhar os melhores momentos com aqueles que estejam ao nosso lado.

Créditos de imagem: Rosa e azul ou As Meninas Cahen d’Anvers de Pierre Auguste Renoir, 1888. Wikipedia Commons. Fotografia de autor desconhecido.

Revisão e edição de Luiz Gustavo Chrispino.

Vera Amatti

Colunista associado para o Brasil em Duna Press Jornal e Magazine, reportando os assuntos e informações sobre atualidades sócio-políticas e econômicas da região.

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