Arte

“Aconteceu, virou Manchete”

Apesar de ter conquistado as concessões para a criação da rede Manchete em 1981, junto com Silvio Santos, Adolpho Bloch só conseguiu inaugurar sua emissora dois anos depois, em 1983, com um início muito promissor, já incomodando a Globo logo de cara.

Após investir US$ 50 milhões em instalações, equipamentos e enlatados e contratar 800 profissionais, a Manchete estreou em 5 de junho de 1983, um domingo, às 19h, com um pronunciamento de Bloch.

O primeiro programa apresentado pela Manchete foi O Mundo Mágico, um show de variedades que contou com diversas apresentações, como Milton Nascimento, Paulinho da Viola, Ney Matogrosso e Alceu Valença. A atração incomodou a Globo, principalmente no Rio de Janeiro. Enquanto o Fantástico alcançou 35 pontos, o show da Manchete chegou perto, com 33 uma proeza para uma estreia.

Logo em seguida, assim que terminou a revista eletrônica da Globo, a Manchete colocou no ar o filme Contatos Imediatos de Terceiro Grau, de Steven Spielberg, até então inédito na TV brasileira. A Manchete gastou nada menos que US$ 800 mil para adquirir os direitos de exibição do longa-metragem, mas o investimento foi recompensado com a liderança: venceu a Globo por 27 a 12, algo impensável no início dos anos 1980.

A Globo não admitia preocupação com a chegada da nova emissora, mas reforçou sua programação, principalmente em cenas de ação nas novelas, com a recém-estreada Guerra dos Sexos e a principal delas, Louco Amor, a das oito. “Ela vai dar um banho em emissoras como a TVS [atual SBT] e a Bandeirantes”, afirmou o então diretor de Eventos Especiais da Globo, Aloysio Legey, à revista Veja de 15 de junho de 1983. Já o diretor-superintendente da Manchete, Rubens Furtado, estava muito animado com a estreia. “Esse filme foi um estraçalho”, disse à mesma reportagem.

Televisão de alto nível

A Manchete não chegou para disputar o primeiro lugar com a Globo, queria o segundo. Até então, o SBT era vice-líder absoluto, seguido por Record e Band. As pretensões da emissora giravam em torno de 8 a 12 pontos e fatia compatível no total de verbas publicitárias.

À Folha de S. Paulo de 5 de junho de 1983, Rubens Furtado explicou: “A TVS se dirige ao público C e D; a Bandeirantes não tem público definido, enquanto a Globo pretende ser eclética. Pesquisas nos mostraram a insatisfação dos segmentos A e B com a programação que lhes é oferecida atualmente. Então, decidimos optar por esse público. Além disso, os Bloch têm a tradição de ter, em sua empresa, iniciativas de alto nível”.

O fôlego inicial da estreia não conseguiu ser repetido nos dias seguintes. O Jornal da Manchete era muito extenso e nem toda a grade continha atrações capazes de puxar grande audiência. Mas a Manchete beliscava alguns destaques aqui e ali, como na transmissão exclusiva do Carnaval de 1984, quando voltou à liderança.

Os concorrentes não acreditavam na proposta da emissora. “Quando entramos, também imaginamos um segundo lugar. Ninguém entra para perder. Porém, acho que se a Manchete quiser sobreviver, a curto prazo terá de optar por uma programação semelhante à nossa e a da Globo, procurando classes mais populares. Como já ficou provado, aqueles que optaram por públicos mais sofisticados tiveram problemas graves, como a Bandeirantes, por exemplo”, destacou à Folha o então vice-presidente do SBT, Luciano Callegari.

Dito e feito: em pouco tempo, a Manchete iniciou reformulações em sua programação, buscando maior audiência e faturamento.

Apesar de grandes momentos como as coberturas carnavalescas e novelas como Pantanal, A História de Ana Raio e Zé Trovão e Xica da Silva, após sucessivas crises e uma grande dívida, a Manchete saiu do ar em 10 de maio de 1999, dando lugar à RedeTV!. Ironicamente, o primeiro slogan da emissora era “a televisão do ano 2000”.

Em 1984, Manchete passou a perna na Globo e tomou o Carnaval

Em 1984, com menos de um ano de existência, a extinta TV Manchete aprontou para cima da Globo. A emissora de Adolpho Bloch (1908-1995) conseguiu os direitos exclusivos de transmissão dos desfiles de Carnaval do Rio de Janeiro, tirando da Globo o principal espetáculo momesco do país, pela primeira vez em um sambódromo. Foi sintonizada por 70% dos televisores da cidade, contra apenas 8% na Globo. A Manchete, que se tornaria referência em transmissão de Carnaval, “passou a perna” na Globo, segundo José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni.

Até 1983, os desfiles do Rio de Janeiro aconteciam nas ruas da cidade, como as avenidas Marquês de Sapucaí e Presidente Vargas, com estrutura móvel montada a cada ano. Em setembro de 1983, o então governador Leonel Brizola (1922-2004) anunciou a construção do sambódromo, na própria Marquês de Sapucaí, ideia do vice-governador Darcy Ribeiro (1922-1997), projetada por Oscar Niemeyer (1907-2012).

A obra foi feita em prazo recorde e inaugurada a tempo para os desfiles de 1984, que, no entanto, tiveram uma importante mudança. Até então, os desfiles eram realizados somente no domingo de Carnaval, com longa duração. A nova configuração oferecia desfiles no domingo e na segunda, como acontece até hoje.

A Globo, capitaneada pelo então todo-poderoso José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, foi contra a mudança, que atrapalharia sua grade de programação. A emissora alegou motivos técnicos para declinar da transmissão. Dessa forma, os direitos exclusivos caíram no colo da Manchete, que pagou 210 milhões de cruzeiros para obtê-los.

A história tem várias versões, além da suposta falta de condições técnicas da Globo. Ao blog Ouro de Tolo, especializado em Carnaval, o então narrador da Manchete, Paulo Stein, disse que a Globo não acreditava em Carnaval de dois dias. O fato é confirmado por Boni em O Livro do Boni, com um acréscimo. Segundo Boni, a Manchete “passou a perna” na Globo.

“O governo, com o sambódromo na mão, assumiu a negociação dos direitos. A coisa foi engrossando e, pressionado, achei uma saída: combinei com o Moysés Weltman (então diretor de programação da Manchete), que ele compraria o Carnaval sozinho e depois repassaria a minha parte. Esse compromisso foi assumido pedra e cal, depois dele ter consultado o Adolfo Bloch. Uma vez assinado o contrato, no entanto, o Weltman não me atendia mais, e o Bloch não respondia nenhum telefonema do dr. Roberto Marinho, que declarou guerra ao Adolpho Bloch. Ficamos fora do Carnaval”, escreveu Boni.

A Manchete tratou de tirar proveito da exclusividade. “Queremos dar um show. Não somos nem um pouco modestos”, disse o próprio Weltman (1932-1985) à revista Veja de 18 de janeiro de 1984. Na reportagem, a Globo foi esnobe. “Carnaval não é coisa que prenda o telespectador na cadeira”, disse João Carlos Magaldi, então diretor de comunicação da Globo.

A transmissão teve narração de Paulo Stein e comentários de Fernando Pamplona (1926-2013), Haroldo Costa, Sérgio Cabral, Albino Pinheiro (1934-1999), Maria Augusta, entre outros. A direção ficou por conta de Weltman, Maurício Sherman e Mauro Costa (1939-2011).

Foi uma lavada, como o próprio Boni admitiu em seu livro. A Manchete dedicou toda a sua programação ao Carnaval, transmitindo os desfiles e os bailes, passando compactos durante o dia, fazendo debates e programas especiais. O slogan era “Carnaval Total, Carnaval Brasil”.

Já a Globo fez a cobertura jornalística da festa, com flashes e o slogan “Programação Normal e o Melhor do Carnaval”. No domingo, após o Fantástico, foi exibido o filme inédito Bonnie e Clyde: uma Rajada de Balas. Foi a primeira vez que a revista eletrônica dominical, criada em 1973, perdeu de ponta a ponta. Na segunda-feira, foi exibido capítulo normal da novela das oito Champagne, de Cassiano Gabus Mendes.

“No Rio, a Manchete deitou e rolou na audiência, mas, no resto do Brasil, sem Carnaval, a programação da Globo cresceu em relação aos anos anteriores. Essa é a verdade completa da história. O Brizola, de forma demagógica, tentou inventar que a Globo quis boicotar o sambódromo. Uma infantilidade. Não iríamos perder o evento por causa disso”, explicou Boni em seu livro.

Texto da Veja de 14 de março de 1984 confirmou que os números superlativos da Manchete ficaram restritos ao Rio de Janeiro. Mas isso não diminuiu o entusiasmo dos integrantes da emissora. “Nem nos meus sonhos mais delirantes imaginei que poderíamos obter índices tão expressivos de audiência”, disse Weltman.

Vitória de Pirro

“Quanto à Manchete, foi para ela uma ‘vitória de Pirro’ (expressão que designa quando se conquista uma vitória dispendendo muitos esforços e reforços). Cutucou o leão com vara curta. Nós, que éramos aliados deles, passamos a considerá-los inimigos e, como a característica da Globo foi sempre a de um corredor de fundo, de longa distância, a Manchete sofreu muito com o não cumprimento do acordo”, conclui Boni.

A Globo voltou a transmitir o Carnaval em 1985, em conjunto com a Manchete. Desde a falência da emissora dos Bloch, reina sozinha nas transmissões durante poucos anos, teve a companhia da Band

Em 1993, greve tirou Manchete do ar em São Paulo

Não foram poucas as crises da TV Manchete durante seus quase 16 anos de existência, de 1983 a 1999. A emissora atravessou diversos momentos difíceis, que culminaram em falência. Algumas crises chamaram a atenção. Em 16 de julho de 1993, um grupo de funcionários e sindicalistas ocupou os transmissores no bairro do Sumaré por falta de pagamento dos salários. Os trabalhadores exigiam do então presidente Itamar Franco uma intervenção federal que afastasse a família Bloch do comando da rede. A Globo, que ignorava a concorrência, noticiou o fato. A Manchete virou manchete.

A Manchete passava por um momento turbulento. Após a venda da emissora para o Grupo IBF, do empresário Hamilton Lucas de Oliveira, o fundador Adolpho Bloch entrou na Justiça e retomou o controle do canal, em abril de 1993, alegando descumprimento de cláusulas contratuais.

Uma greve já havia ocorrido algumas semanas antes, prejudicando o andamento da programação. Desta vez, no entanto, os ativistas foram mais ousados: tiraram a emissora do ar em São Paulo e passaram a exibir vídeos, entrevistas e comunicados por conta própria. O fato foi notícia em todos os telejornais, como o São Paulo Já (Globo), o Jornal da Cultura 60 Minutos (Cultura) e o Informe São Paulo (Record). No SBT, a “greve virou manchete”.

“Quem sintonizou a TV Manchete hoje de manhã viu o comunicado dos funcionários, que disseram que estão parados porque não recebem o salário. O clima é pacífico e apenas um carro da polícia acompanha o movimento”, disse Carlos Nascimento na Globo.

“Eles não recebem há dois meses e decidiram fazer o protesto. Às sete horas da manhã o aviso substituiu a programação da TV Manchete. Os 700 trabalhadores da TV Manchete de São Paulo vivem nessa via sacra faz seis meses. Tem meses que eles não recebem os salários, nos outros recebem parte dos salários. Nesses últimos dois meses, a TV Manchete não tem feito nenhum pagamento”, disse o jornalístico da Cultura.

O diretor da Manchete em São Paulo, Oscar Bloch, considerou a invasão “precipitada e intempestiva” e afirmou que o ato foi organizado por pessoas que não eram funcionárias da emissora.

Em entrevista ao telejornal da Record, Marco Ribeiro, então presidente do Sindicato dos Radialistas do Estado de São Paulo, disse o grupo pretendia ficar na emissora até que a situação fosse normalizada. “Queremos discutir com parlamentares, a sociedade civil e os ministérios do Trabalho e da Comunicação uma saída para a TV Manchete, não queremos que a emissora feche. O movimento é totalmente pacífico”, declarou.

A greve foi encerrada na noite do mesmo dia 16 de julho. Os funcionários desocuparam o prédio e a rede voltou a transmitir a programação normal na capital paulista.

No Jornal da Manchete daquele dia, Márcia Peltier leu uma nota da direção da Manchete:

“Na madrugada de hoje, dia 16, os nossos transmissores de São Paulo foram vítimas de uma violência. Uma invasão de um grupo de 25 baderneiros, acompanhados por políticos ligados à CUT, estranhos aos quadros de funcionários da Manchete. O motivo alegado foi o atraso no pagamento dos salários. Ao reassumir a Televisão Manchete por determinação judicial, o Grupo Bloch a encontrou com atraso médio de cinco meses no pagamento dos salários em toda a rede. Com um esforço imenso nesta época de crise, o Grupo Bloch conseguiu reduzir esse atraso para menos de dois meses, com a promessa de saldar o mês de maio até a próxima quinta-feira.”

A nota prosseguiu: “Na verdade, a principal razão dessa violência é a decisão da Rede Manchete de concentrar no Rio de Janeiro a sua base de geração, porque nenhuma rede mantém duas fontes de produção. Economicamente, seria um suicídio. Neste exato momento, a Rede Manchete mantém unidas suas 38 emissoras afiliadas, começa a crescer em audiência, reconquistando a credibilidade do público e recebendo apoio das agências de publicidade. Seus 2.500 trabalhadores não podem ser prejudicados por 25 baderneiros. As providências de ordem legal e policial já estão sendo tomadas para regularizar a transmissão de São Paulo”.

Após a morte de Adolpho Bloch em 1995, a situação da Manchete ficou insustentável. A emissora saiu do ar em 10 de maio de 1999, dando lugar à RedeTV!.

Fonte:

TV História

Imagem ilustrativa. Unsplash. Fotografia de Glenn Carstens.

Wesley Lima

Colunista associado para o Brasil em Duna Press Jornal e Magazine, reportando os assuntos e informações sobre atualidades culturais, sócio-políticas e econômicas da região.

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