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O Caçador – Capitulo 2 – Os Termos

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A vampira levantou do chão, tocou o pescoço ferido e o corte sumiu sob seus dedos. Ela o olhou sob as mechas do cabelo escuro e numa ameaça silenciosa partiu.

O Caçador pode sentir o toque de seu olhar aborrecido, furioso, mas por um momento acreditou ter visto lágrimas. – Ela havia ultrapassado o limite e teve o que mereceu. – Deixou-se cair pesadamente sobre o catre e fechou os olhos. Lembranças invadiram sua mente e ele não as aprovou, todavia, as deixou vir lentamente sobre si. – Nelas, uma jovem mulher de cabelos tão escuros quanto os da vampira corria em um campo de trigo sob o sol da primavera. Os olhos dela eram como joias e no seu mundo só havia inocência e alegria.

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Uma hora depois o vampiro retornou e se prostrou diante da cela. O Caçador estava deitado no catre e assim permaneceu, pernas cruzadas, mãos sob a nuca, os olhos fechados como se dormisse.

– Não dê atenção para Safira – começou o vampiro. – Ela é uma criatura digna de pena. Matou seu criador e agora vive sob minha proteção.

– Por que ela não foi executada? Não é o que manda a lei de seu mundo? – O guerreiro quis saber, ainda na mesma posição.

– O sangue dos antigos precisa ser mantido. E todos sabiam o quanto Aster era cruel, mesmo com suas crias. Estava no julgamento e resolvi me tornar seu tutor. Ela me serve bem, é silenciosa, inteligente.

O Caçador ouviu, mas não demonstrou interesse. Apenas esperou por mais do vampiro. – Virgílio era um vampiro muito velho e poderoso. Cumpria as leis, mas ficava longe da corte do rei de sua espécie. – Ele herdara o sangue dos imortais que ironicamente foram os responsáveis pela origem da Ouroboros. Hoje eles viviam sob vigilância, eram respeitados e evitados. Não por medo, apenas por uma questão de códigos. – Para matá-lo ele teria de passar por cima de muitas leis, e mesmo assim seria executado, algo que sua raça não precisava saber. – Haviam ressalvas, mas ele salvou sua vida. – O melhor a fazer era ouvir sua ladainha. – E eles tinham um inimigo em comum, Galeso. 

– Jovem, bela, mas tola. Sabe muito pouco sobre o que realmente é um Caçador. A perdoe, não a mate quando o libertar, ela me é muito útil como criada. Mas o ponto aqui é, ela gostou de você. – Virgílio provocava um animal perigoso. – Sabe, ela não falava há um século. E você a fez falar; é como dizem, vocês são “poderosos”. Se desejar a oferecerei a você. Acho que ela não se recusará a ser possuída por um de sua espécie. 

– Sei quem é e a posição que ocupa dentro do seu mundo. Mas posso matá-lo, e diante de tal sugestão isso se tornará um prazer para minha pessoa. Não me insulte, velho. – O avisou perigosamente. – Contudo, já que estamos conversando, o que deseja, além de ouvir o som de sua própria voz, criatura? – O Caçador perguntou tocando os cabelos um tanto longos.

– Temos um inimigo em comum – disse sem ligar para suas ameaças.

– O ar que respiramos também. – O Caçador disse se sentando no catre, fazendo Virgílio recuar instintivamente.

– Desejo Lisandro morto. –Virgílio afirmou de punho cerrado, olhos fixos.

– Desejar é fácil, mundano, conseguir é sagrado, e bem mais difícil. – O guerreiro falou mais leve, pois começou a entender as intenções do vampiro.

– Você vai conseguir, matador. – Virgílio soltou confiante. – E se não o fez até agora é porque aquele cão dos infernos se esconde como convém a qualquer amaldiçoado.

– Lisandro não está se escondendo. Ele está em sua fortaleza, vivendo seus dias de glória sob a proteção de seu irmão Galeso – disse e quase se arrependeu. Ele não precisava discutir com aquela criatura.

– Engano seu, Caçador. Ele o teme, porque é o único que conhece sua maior fraqueza, Teodora. – Virgílio sorriu e seus caninos ficaram levemente expostos.

O nome mencionado fez o Caçador semicerrar os olhos e encaixar mais uma peça do quebra-cabeça.

– Venho procurando um modo de destruir Lisandro há mais tempo do que posso lembrar – admitiu o vampiro. – Finalmente percebi que você era a resposta mais lógica – comentou sério. – O convidou a lutar, e o que ele fez? – Virgílio revelou. – Mandou apenas seus “cachorrinhos” para enfrentá-lo – murmurou cínico. – E somente agora compreendo o porquê – disse pensativo, infeliz.

– O que fez?

– Teodora, eu a capturei.

O Caçador ergueu a vista lentamente e fitou o vampiro com os olhos semicerrados. A aversão que sentia pela espécie de Virgílio era sem limite. Mas, diante de sua revelação, se tornou um pouco maior. Ele foi para perto das grades e observou o vampiro com atenção.

– O que fez? – Ele ouvira bem, mas precisava ter certeza.

– O segui, vigiei e descobri onde Teodora estava escondida, e a raptei – falou sem nenhum constrangimento.

– Isso é impossível! – O Caçador disse seguro. – Ninguém… – disse, e repetiu. – Ninguém consegue me seguir. – Ele estava furioso.

– Pouco importa o que pense, foi feito. – Virgílio respondeu, não elucidando suas dúvidas e com uma satisfação irônica na face pálida, nos olhos cor de mel, falou. – Não é pessoal, mas vocês também têm fraquezas – disse por fim.

– Acho que sabe que isso é o bastante para que o mutile, não é mesmo? – O homem o avisou, sombrio. – Se quer vingança, chame seu inimigo a campo e lute com honra. O que fez é desonroso. Mas o que esperar de parasitas sugadores de sangue?

– Acredite, estou apenas devolvendo as carícias que recebi. Tenho direito a minha vingança. E como deve saber, Galeso é procurado apenas por existir.

– A matou? – quis saber, pois isso agora o envolvia.

Havia visitado a fortaleza de Lisandro fazia dois dias. – Os Caçadores tinham a obrigação de visitar as fortalezas dos imortais e verificar se eles estavam mantendo mortais como escravos de sangue, ou outras criaturas. – Escravos eram proibidos. O mortal deveria desejar o convívio e provar que permitia servir de doador para o imortal. Ele achou oito mortais nas masmorras em péssimas condições. Teve de executá-los e não gostou, deixou a fortaleza sob vigilância de dois Milhafres. Isso era prática comum na Ouroboros. Mas que certamente incomodou o vampiro enormemente. – O aviso era simples, se mortais fossem novamente encontrados na condição de escravos, sentenciaria o líder do bando, no caso, Lisandro.

– Ela vale mais viva – disse o vampiro andando em frente à cela, de um lado para o outro.

O Caçador compreendeu o motivo do ataque e a força usada contra ele. Provavelmente Lisandro acreditava que ele havia raptado sua cria.

– Começo a me perguntar se ter Lisandro como inimigo vale o esforço – disse Virgílio. – Galeso ainda não veio em seu socorro. Ele mandou seus cães, ao invés de ir pessoalmente lutar com você; é um covarde. Mas me diga, agora que ele o atacou abertamente vai matá-lo?

– Isso não lhe diz respeito, criatura. – O Caçador não poderia deixar o ataque passar em brancas nuvens, mas precisava ser justo. Ele atacou o alvo errado.

– Vamos, não seja tão arrogante, joguei alto e perdi – confessou Virgílio realmente infeliz. – Entretanto, saiba que não teria enfrentado Lisandro sozinho. O mataria com prazer depois de torturá-lo. Você poderia ficar com seus cães para se divertir – explicou frio.

– Viu a luta?

– De camarote. Ainda não acredita que posso segui-lo? – perguntou, sorrindo com uma satisfação cruel. – Estava me divertindo e cuidando do seu bem-estar, não é sempre que se pode ver a laia lupina perecer. E como disse, preciso de sua ajuda – revelou sincero.

– Não se preocupe com meu bem-estar, eu não ligarei para o seu quando cortar sua cabeça. Você provocou um incidente desnecessário. A lei exige reparação. – O Caçador o olhava misterioso.

–Vocês, Caçadores, são realmente muito honrados para serem reais. – Ele disse cinicamente.

– A lei existe para ser seguida – insistiu o Caçador.

– Para ter sua filha de volta Lisandro lutaria. Ele se importa com o fim dos que carregam seu sangue. Bem diferente da sua linhagem – falou e se afastou das grades.

– Não me insulte, eu pertenço ao mundo civilizado.

Virgílio exibiu a mão lânguida e nela um anel pesado, em ouro, com um símbolo de poder antigo e esquecido, soterrado nas areias do Egito, na região de Deir El-Bahri. – Porém, a puxou de volta com certo ressentimento.

– Espera que me curve? – O Caçador perguntou num deboche. – Se alguém aqui deveria se curvar era você, criatura – dizendo isso estendeu a mão forte e exibiu o brasão feito em ouro onde uma serpente engolia a própria cauda. – O pacto é respeitado e tem limites, e você desrespeitou todos os que seu “rei” jurou honrar quando me deteve um século atrás na Espanha.

–Tenho muito a lhe oferecer e acredito que não se negará a negociar comigo, Caçador.

– Não negocio com minhas presas.

– Vocês se consideram tão superiores! – Virgílio debochou com os olhos febris. – Mas eu sei que não são, tem fraquezas piores, ou iguais, as minhas. Junte-se a mim, vamos destruir Lisandro. – Virgílio fez seu lance.

– Lisandro vai morrer, sua ajuda é desnecessária.

– Qual a pior desonra para um Caçador? – Ele fez a pergunta fitando a íris do Caçador dilatar. – Lutar ao lado de um vampiro ou se apaixonar por uma vampira?

O Caçador voou sobre as grades da cela ruidosamente, ele esticava o braço tentando alcançar o pescoço do vampiro, que se mantinha a preciosos centímetros de distância. Ele sorria da ira do Caçador. Havia tanto ódio dentro dele, que mais um pouco deslocaria o ombro somente para estraçalhar sua garganta.

– Tome, acalme-se – dizendo isso Virgílio estendeu diante dos dedos do Caçador uma corrente onde pendia um coração feito de ouro.

Os dedos se fecharam sobre a corrente e a trouxeram para perto de si. E ali estava a verdade feita de realidade e ouro: sobre o coração duas letras gravadas, “H e C”. O Caçador deu as costas ao vampiro e assim ficou por incontáveis minutos, não queria que o vampiro visse sua fragilidade.

– Onde conseguiu isso? – A voz dele estava pesada, carregada de seriedade.

– Com a única pessoa, além de você, a conhecer a verdade, Celina. A vampira que amou e presenteou com tal mimo.

–Você mente, criatura maldita! – disse ainda fitando a jóia. – Celina está morta… – A voz rouca e baixa morreu em sua garganta. – Morta. – Foi um sussurro.

– O colocarei diante dela novamente, e se desejar poderá matá-la, mas haverá um preço – disse, conhecedor da verdade nos menores detalhes.

– O que quer? – A voz do Caçador estava presa na garganta como um rugido animal.

– Eu já lhe disse. – Virgílio começou a falar, agora dono da situação. – Ajude-me a matar Lisandro, e depois Galeso. Façamos uma trégua, lutemos para destruir um inimigo em comum e prometo colocar Celina em suas mãos. E não o envergonhar diante da Ouroboros.

O Caçador colocou a corrente de ouro em volta do pescoço e puxou o capuz sobre a cabeça. Sua pele se tornou pálida como a de um cadáver e os olhos se tornaram muito negros, como os de um demônio. Era o dom da morte, vindo direto da semideusa que os guiava. Poucos sabiam seu nome. – Virgílio a conheceu, sabia seu nome, mas jurou jamais o falar em voz alta novamente, temendo sua fúria; Kayla.

O Caçador destruiu a cela inteira. Destroçou o catre com as mãos nuas, o banco de madeira que lançou sobre as grades da cela fez o vampiro recuar. E quando, por fim, passou sua espada pelas barras de ferro reforçado fez verter um rastro de faíscas enquanto urrou de ódio. Na verdade, beirava a animalidade. Arquejante como um animal, oculto pela capa e capuz, ele tocou o cordão sobre o peito e só então falou:

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– Está feito. – Foi tudo que o Caçador conseguiu dizer, enquanto colocava a corrente sob suas vestes, a escondendo.

–Acho que consegui chamar sua atenção, não é mesmo? – Virgílio tentou a cordialidade.

–Acredite-me, criatura, cedo ou tarde você chamaria minha atenção, e garanto que a daria completamente. – O Caçador disse e sorriu friamente, o rosto readquirindo os ares humanos.

– Pergunto-me se é seguro abrir a cela. – Virgílio disse fitando a face de pedra do Caçador, que agora o olhava com ainda mais rancor.

– Só descobrirá após girar a chave.

Virgílio percebeu que não teria nenhuma garantia do Caçador, e resolveu não perder um minuto que fosse de seu tempo; precisava agir rápido antes que ele percebesse o óbvio. A chave girou e a cela se abriu, o Caçador saiu e esperou com as mãos para trás e, de modo elegante, seguiu Virgílio que, ao caminhar à frente do Caçador sentiu um arrepio subindo pela espinha, o coração bateu depressa e só se sentiu melhor quando chegou no salão da mansão. Ele sentiu medo, algo que não sentia há séculos.

Safira estava próxima à lareira quando os viu chegar. Não encarou o Caçador, na verdade abaixou a vista, ao sentir seu olhar sobre si.

– Sente-se. Esqueça por um minuto o que somos e deixe-me ser hospitaleiro. – Virgílio disse seguro e ainda com a cabeça sobre os ombros.

– É um tanto difícil quando sinto seu cheiro – respondeu, jogando-se pesadamente sobre a poltrona de veludo vermelho. – Mas acalme-se, temos um acordo. – O Caçador disse fitando Safira com muito interesse.

Ela servia a mesa com algumas iguarias destinadas ao visitante. Havia pão fresco, vinho, queijo, um assado com boa aparência e algumas frutas. Ela servia os pratos com cuidado e até certo jeito, percebeu o Caçador.

–Tenho sede – disse olhando para Virgílio.

Imediatamente ele deu ordens para que fossem servidos. A vampira se adiantou com a bandeja e dois cálices de prata pura. O Caçador tomou o cálice da bandeja, mantendo os olhos na face da vampira.

Ela mantinha os olhos baixos e os cabelos lisos cobriam a face amuada. Mas pode ver um relance dos lábios dela quando fez uma careta para ele. – A reciproca é a mesma – pensou ele e só então entendeu o motivo pelo qual o vampiro mantinha aquela vampira o servindo. – Ela lembrava, parecia com Celina! – Os cabelos lisos e negros, os olhos. – Mas ela não era Celina. Disso tinha certeza, ela fora morta muitos anos atrás pela Ouroboros. E ele punido severamente quando ainda era mortal… – Melhor não lembrar.

– Saia, criatura, não quero olhar para sua cara enquanto como.

A vampira segurou a bandeja com força junto ao corpo e o fitou, trêmula. O fitava por entre os fios em desalinho e por fim seu senhor e mestre atual confirmou.

– Obedeça. – O vampiro ordenou. – Pode se recolher, Safira.

A vampira colocou a bandeja sobre o carrinho que havia trazido com a refeição e se afastou sem fazer nenhum ruído, rumo à saída. – Haveria tempo; como Virgílio havia lhe prometido, ela poderia matá-lo quando fizesse o que seu mestre queria. – Aí ele seria somente dela.

Continua no capítulo 3

Nazareth Fonseca

Nazareth Fonseca é escritora e jornalista e já conta com dez livros publicados, entre eles a série Alma e Sangue. Aficionada em filmes, séries e livros gosta de escrever sobre tudo que lê e assiste.

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