
Escute o conto A Partida Aqui.
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Resolvi dividir com vocês um pouco do meu trabalho de escritora. Uma vez por semana vou trazer um conto, ou uma pequena história com pelo menos 3 ou 4 capítulos. – Se vocês gostarem, trago uma história maior. – Vou publicar sempre as quartas-feiras. Serão as Quartas de Contos. Para inaugurar essa parte da minha coluna, vou publicar o primeiro conto que publiquei, a Partida. – Ele foi publicado no jornal o Galo, em Natal, Rio Grande do Norte. Hoje ele faz parte do livro de contos, A Cruzadinha maldita, disponível no Amazon. Vou deixar o link abaixo quem quiser ler os demais contos.
– A Partida
Sou muito provinciano, hábitos antigos, costumes passados de pai para filho. Tento respeitar a dama de negro, o homem da foice, seja lá que forma ela assuma, é sempre bom lembrar que dela não fugimos, a morte.
Pedro realmente ia partir, a mala estava pronta. Em seu olhar havia o vazio de quem olha sem nada ver, ou pelo menos tenta ignorar o outro. Recolhia seus livros e deixava as recordações que juntos viveram. Dora, sentada na beira da cama, nada mais significava, ela lembrava dor e tempo perdido num passado que logo esqueceria nos braços da nova amada.
Uma mancha no canto de seu olho, algo que desprezou. Havia um brilho de recomeço, a estranha sensação de quem diz: dessa vez será melhor. O futuro lhe sorria e as lágrimas dela nada significavam, seus pedidos, suas súplicas. Ele só via o seu futuro. Passado, lembranças e era somente o que restaria para a ex-mulher. A cama onde tantas vezes fizeram amor, os travesseiros, o banheiro, a mesa de café onde tantas vezes riram e brigaram por um sentimento, um círculo de ouro jogado no chão do quarto com desprezo e nojo. Foi um símbolo, depois uma algema e por fim lixo.
Sala, quarto, escritório, ele corria contra o tempo, e a esposa contra o amor não correspondido. Onde estavam as promessas, as palavras carinhosas? Dora abriu a gaveta, puxou a arma e o esperou calmamente. Se Deus os uniu, que os recebesse em seus braços agora. Pedro não esperava. Estancou, a surpresa quase o matou de susto, soltou a mala e ainda debochou.
– Você não tem coragem. – Ele esqueceu a arma.
Dora riu amarga e suas últimas palavras foram:
– Estou grávida.
Um sonho, uma ilusão. Balançou a cabeça para vê-lo terminar a mala, estava cansada de esconder a verdade. Ele parou e ficou por algum tempo no meio do quarto. Durante cinco anos de casamento sempre quiseram ter filhos, mas nunca acontecia. E por que agora? Quando nada mais significava?
Dois disparos e o silêncio. Sentou na cama e ficou assim por quase meia hora. Pensava e se lembrava de seu tempo de infância. Pegou o telefone e, diante de Dora, dispensou a amante. Levou uma semana para ela entender que ele ia ficar com a esposa, agora grávida.
Claro, a amante fez escândalo e ligou muitas vezes, mas Pedro não atendia ao telefone, só Dora. Ele morreu para ela. A casa estava silenciosa, um casal perdido dentro de sua consternação, uma criança sendo gerada sob o olhar vidrado do pai.
Pedro não desfez a mala, apenas ia tirando as roupas de dentro à medida que precisava. Fechava-a com uma expressão rígida na face. O guarda-roupas continuava vazio. Era um homem de princípios, não ia abandonar um filho no mundo! Pensava na criança. No que iria sofrer sem ter a figura do pai para lhe proteger do mundo, como um dia ele mesmo foi desprotegido. Graças a um trauma de infância, ficou ao lado da esposa, mesmo não a amando. Ainda era jovem, poderia suportar algum tempo até que a criança crescesse um pouco. O corpo ficou, mas a alma não, ela estava muito longe.
Dora fingia o tempo todo, era como se ele nunca houvesse lançado a aliança sobre ela e lhe dito coisas tão odiosas. Viu com prazer ele procurar a aliança no chão do quarto e pôr no dedo. Pedro ficou muito caseiro e sequer falava com os amigos, estava o tempo todo ao lado da mulher. Parecia evitar o mundo; além do portão de madeira, só haviam problemas e tentações. Mudou bastante, não falava muito e até comia seu bolo de milho sem reclamar.
Todos o acharam diferente, até arredio. Dora o defendia e até tentou levá-lo à igreja, mas mudou de ideia ao ver o carro da amante dele pela vizinhança. Ela ainda o queria. Um mês depois e ela ainda insistia com aquele romance absurdo!
Dora na cama notou que a mão de Pedro estava inchada. Pela manhã acordou e não o viu na cama, a aliança sobre a mesinha de cabeceira. Correu desembestada pela casa e o encontrou no portão conversando com o padeiro. Foi somente um susto, ele ainda estava ao seu lado, iam criar o filho juntos. Segurou o ventre sentindo uma dor aguda e caiu ao chão.
O carteiro abriu o portão e a juntou do chão da área da casa e começou a gritar por ajuda. Ninguém apareceu do interior da casa. Sem alternativas a tomou nos braços e a levou para dentro, enquanto ela gemia e sangrava. Pela casa procurou o quarto e logo o achou.
A visão é um dos cinco sentidos, provavelmente o mais enganoso deles. Ela lhe prega peças. Uma sombra pode ser um vulto, um vulto pode ser um homem. E um cadáver pode ser um marido fiel.
Pedro não pode se sentir aliviado, e muito menos livre. Estava morto há muito tempo para sentir qualquer coisa. Seu corpo apodrecia sobre a cama há um mês. De sua mão a aliança já havia caído há muito tempo com o resto de seu dedo.
O carteiro vomitou até quase morrer, e Dora continuava chamando o marido. Logo a casa ficou cheia de gente, a ambulância apareceu e levou Dora para o hospital. Ela perdeu o bebê.
Naquela manhã ensolarada, naquele quarto cheio de moscas e fétido, ninguém conseguiu tomar café da manhã. Nem na casa, na vizinhança, no bairro onde a notícia se espalhou.
Era por demais nauseante a visão do cadáver, e mais ainda em imaginar Dora vivendo com ele durante todo aquele tempo.
O assunto virou manchete de jornal, Dora foi internada completamente louca, pensando ainda estar grávida. A amante virou celebridade. O legista encontrou dentro de um cadáver de trinta dias pedaços de bolo de milho.