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Bem-vindos a Terra Média, Tolkienianos !

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J.R.R Tolkien foi um mestre erudito com um entendimento e sensibilidade única. Seu esmero e cuidados na hora de revisar suas obras revelam um espírito perfeccionista. Para celebrar seu legado, entrevistamos a defensora de alta cultura, designer e fotógrafa, Luma Costa. Ela administra a página do Instagram Tolkienianos que como ela mesma define “é um apostolado de divulgação dos valores contidos nas obras de Tolkien”. Uma apaixonada pelas obras do grande Professor e uma mulher não somente inteligente como também cheia de grande conhecimento. Aproveitem a entrevista!

1 – J. R. R. Tolkien, sem dúvida, é um dos autores mais conhecidos da literatura inglesa tanto pela adaptação de sua obra O Senhor dos Anéis como também pela sua maravilhosa escrita, forma, conteúdo e o mundo que retrata. Quais pontos da formação acadêmica de Tolkien foram marcantes no seu desenvolvimento como escritor? 

Tolkien era filólogo e professor – dirigiu a cadeira de Anglo-Saxão, Inglês Antigo, na Universidade de Oxford, de 1925 a 1945, e é considerado o maior especialista no assunto. Também lá, deu aulas de Inglês e Literatura Inglesa de 1945 a 1959. O amor pela língua o levou a criar a sua própria e, depois, um universo inteiro para ela, afinal, uma língua só poderia ser consolidada juntamente com uma sociedade com histórias e tradições. A sua gigantesca formação, a criação do mundo literário e sua bagagem de influências é, provavelmente, o motivo do mundo inteiro se identificar com suas histórias, cheias de tradições e semelhanças com diversos povos e épocas.

2 – Quais escritores o influenciaram?

Como professor de Anglo-Saxão, Tolkien teve grande influência das poesias épicas, o maior exemplo é Beowulf, um marco da literatura medieval, de autor desconhecido, que ele traduziu ao Inglês antigo. Outro bom exemplo é o Kelevala, que diz respeito ao folclore finlandês, de onde o idioma inspirou, posteriormente, à criação do Quenya (idioma élfico criado pelo autor). Tolkien teve enorme influência e apresso pela mitologia nórdica, muitos nomes de personagens como “Gimli” derivam diretamente da mitologia nórdica. “Gandalf” pode ser traduzido como “elfo mágico” em nórdico antigo e muitos acreditam que Gandalf é inspirado em Odin, um dos principais deuses da mitologia nórdica. Com relação aos valores contidos em suas obras, Tolkien teve influência de grandes escritores católicos, uma vez que foi criado por um sacerdote e fez uso de sua biblioteca pessoal, podemos citar Santo Henry Newman, G.K. Chesterton, T. S. Eliot, dentre outros.

3 – Há alguns aspectos biográficos da vida de Tolkien que o inspiraram a escrever algumas partes de sua obra como O Senhor dos Anéis ou O Hobbit? Sua participação na primeira guerra, por exemplo, ou as mudanças sociais advindas com o fim desta?

Sim. Não há dúvidas que a guerra o influenciou, mais do que isso, foi durante a guerra que ele criou a Terra-média. Muitos acontecimentos são refletidos em suas obras. A Sociedade do Anel, primeiro volume da trilogia O Senhor dos Anéis, foi publicado em 29 de julho de 1954, coincidentemente próximo do aniversário da 40 anos da Primeira Guerra Mundial, e os demais já estavam sendo escritos. Na segunda Guerra, os filhos de Tolkien, Michael e Christopher prestaram serviço militar e ele diz ao segundo, que estava em treinamento como piloto de caça: “Mantenha sua Hobbiteza no coração, e pense em todas as histórias como se estivesse assim nelas. Você está dentro de uma grande história!”. Foi assim que ele lidou com suas experiências.

4 – Alguns dados apontam uma amizade forte, embora marcada por divergências no campo literário, entre C.S Lewis e Tolkien; Tolkien não viu com bons olhos o primeiro conto publicado de As Crônicas de Nárnia – O Leão, a Bruxa e o Guarda-Roupa, como também não avaliou bem As cartas de um dia a seu aprendiz embora Lewis havia dedicado esta obra a Tolkien, tendo escrito uma dedicatória. Qual a sua opinião sobre a amizade entre estes dois autores? Houve alguma influência do trabalho de um sobre o do outro? Se sim, em que medida? Qual a razão das críticas duras de Tolkien à obra de Lewis?

Essa impressão de “falsidade” ou frieza entre a amizade deles que foi disseminada ao longo dos anos, eu atribuo, principalmente, à falta de compreensão sobre a amizade que tinham e à essa mentalidade atual de que os amigos não podem se criticar e que a sinceridade é um defeito que fere o outro. Tolkien e Lewis tinham liberdade de irmãos, diziam o que julgavam bom ou ruim no trabalho do outro. Sabiam receber duras críticas e, mesmo assim, escrever uma dedicatória, talvez pelo valor delas em seus crescimentos pessoais. Eram homens intelectuais que receberam uma educação clássica, passaram por guerras e aprenderam desde cedo como a vida poderia ser dura, não acho que se chateavam com coisas que pensamos ser insensibilidade.

O que posso dizer é que Tolkien era realmente muito perfeccionista, refazia suas obras várias vezes e sempre tinha algo para modificar nelas, não sei se isso era um defeito, afinal, amamos o resultado. Se era assim com suas obras, não é de se espantar o quanto devia criticar o que não saiu da sua própria sabedoria, né? Ele era assim com todos, criticou Belloc e Chesterton, mas, continuava lendo o que escreviam e os admirava, Lewis era apenas o amigo mais próximo e íntimo, onde tudo isso ganhava mais espaço. Saibam que ele também fazia o mesmo em relação a Tolkien, que certa vez leu, pessoalmente e em voz alta, Beren e Lúthien para Lewis, que adorou, mas logo entregou 14 páginas de críticas e sugestões.

Tinham divergências, como todos os amigos. Tolkien fez com que Lewis se convertesse, mas, ele se tornou anglicano e isso o chateou por toda a vida. Sobre as alegorias, ele considerava que não era a melhor forma de passar uma boa mensagem moral, era óbvia demais, mas, deu aos filhos As Crônicas de Nárnia ressaltando que era apenas uma porta para grandes obras complexas e a elogiou como a obra alegórica que ela é.

Havia muito carinho entre Tokien e Lewis, percebe-se pelos apelidos atribuídos entre eles: Lewis era “Jack” e Tokien era “Tollers”. Ambos influenciaram um ao outro, se ajudaram em grandes decisões profissionais, passavam tanto tempo juntos que chegava a irritar a esposa de Tolkien, liam tudo que escreviam um para o outro. Foi uma amizade muito bonita e sincera, podemos ver claramente isso nas cartas que se enviavam. Tiveram altos e baixos, o que é normal.

5 – Por que Tolkien criticava o uso de alegorias?

Tolkien considerava que as alegorias vão contra a liberdade de interpretação do leitor e limita suas reflexões, uma alegoria precede a leitura, tem um significado pré-determinado. Tolkien defendia a aplicabilidade, ou seja, a capacidade do leitor de se utilizar do que está no livro, sendo alegórico ou não, para comparação com sua própria vida e experiência. Ele não era contrário ao uso de alegorias como muitos pensam, mas, considerava que essa era apenas a porta de entrada para a literatura, talvez uma iniciação de leitura infantil, que precisa da obviedade para tirar uma lição. Nas palavras do próprio professor: “Acho que muitos confundem aplicabilidade com alegoria; mas, a primeira reside na liberdade do leitor, e a segunda na dominação proposital do autor.”

6 – Como brilhante filólogo, Tolkien dedicou trabalho e tempo para desenvolver a escrita dos povos da Terra Média. Como você entende a importância deste trabalho?

Tolkien teve um contato muito intenso com diversas línguas e por elas se apaixonou desde pequeno. Ele aprendeu Latim, Alemão e Francês com sua mãe. Na escola, aprendeu com professores ou por conta própria o Inglês Médio, Inglês Antigo, Finlandês, Gótico, Grego, Italiano, Nórdico Antigo, Espanhol, Galês Moderno e Galês Medieval, Dinamarquês, Holandês, Lombardo, Norueguês, Russo, Sueco e muitas línguas ancestrais germânicas e eslavas. Não era difícil imaginar que seria um filólogo profissional.

O nevbosh foi sua primeira tentativa de criar uma língua completa, quando estudava Grego, eram palavras pseudogregas. Mais tarde veio a primeira tentativa séria de construir uma língua própria, chamada Naffarin. Era fortemente influenciada pelo Espanhol, mas, com sua própria fonologia (estrutura de sons) e gramática. Tolkien escolheu o espanhol porque seu tutor e pai adotivo, Padre Francis, tinha descendência espanhola, era em sua biblioteca que Tolkien passava muito tempo lendo livros.

Depois Tolkien descobriu o Gótico, mas, não era uma língua completa, e Tolkien teve que criar novas palavras. Finalmente, ele começou a criar uma língua germânica desconhecida, mas concluiu “…desisti de minha tentativa de inventar uma língua germânica desaparecida, e minha própria língua – ou séries de línguas inventadas – se tornaram fortemente influenciadas pelo Finlandês em padrões fonéticos e estrutura.” Esta língua se tornou o Quenya, sua principal língua élfica, mas, os elfos ainda não haviam entrado na história.

O trabalho de Tolkien como filólogo precedeu a criação do Legendarium, é como se ele tivesse vestido a língua com todo um universo, ele dizia que não há língua sem seu povo, sua história e tradições. É, portanto, do seu amor pelas línguas que surgiu toda a sua criação.

7 – Quais mitos e lendas serviram de base para a construção dos personagens das obras de Tolkien?

Principalmente a mitologia nórdica e o próprio “mito que se fez real” do Cristianismo. É importante destacar que a influência não se dá apenas pelos traços nítidos de uma obra, e sim por tudo aquilo que formou o imaginário de uma pessoa ao longo de sua vida, que influenciará no que era produzirá para sempre.

8 – Fale um pouco sobre a obra SILMARILLION, esta que ainda reside como pouco conhecida do grande público.

Silmarillion é a obra da vida de Tolkien, aquela que ele mais se dedicou, tanto que morreu sem conseguir publicar. Foi publicada pelo filho Christopher Tolkien depois de sua morte. Em O Silmarillion encontramos a origem da Terra Média e dos povos, é as gênesis da maioria das obras dele. Quem gostaria de entender melhor de onde vieram, a história dos personagens e conflitos de O Senhor dos Anéis? Este é o livro.

9 – As traduções nem sempre são confiáveis devido a complexidade do conteúdo, pelo grande afastamento linguístico da língua original com a vernácula (a da tradução), pela incapacidade do tradutor e diversos outros fatores. As traduções da obra para o Português Brasileiro são tecnicamente bem realizadas? Quais traduções vocês recomendam?

Traduzir Tolkien é uma responsabilidade enorme e o público tolkieniano é muito exigente. Recentemente a editora Haper Collins Brasil começou a lançar novas edições das obras de Tolkien e foi bastante criticada por algumas mudanças. O último lançamento foi o box da trilogia O Senhor dos Anéis, e ele é o mais completo da história… sim, o brasileiro! O tradutor é Ronald Kyrmse, o maior tolkienista do Brasil, tradutor de quase tudo que temos do Professor aqui e que o faz com muito cuidado e amor. Bem, mas tirando o fato de um tradutor ter boa intenção, vamos aos fatos:

A edição inglesa teve erros “bobos” (como em árvores genealógicas), até completar 50 anos e era esta edição que tínhamos traduzida no Brasil. A nova edição que temos aqui foi traduzida a partir da edição corrigida, após 60 anos, portanto deveria ser considerada a mais correta. Muitas pessoas estão embarcando em grupos de críticas, eu prefiro pensar que existe uma editora que decidiu trazer Tolkien ao Brasil (inclusive as obras ainda não publicadas em português), com um primoroso editorial e uma tradução que se assemelha ao máximo ao Inglês Antigo e Arcaico.

Críticas são válidas, mas, temos que saber separar o que não nos agradou do que realmente são erros e descasos com a obra, e não é o caso das novas edições. Recomendamos que leiam Tolkien, de preferência de todas as editoras e edições!

10 – A Amazon está desenvolvendo uma série de O Senhor dos Anéis, qual a expectativa de vocês?

Pelo que temos de informações é uma grande e competente equipe. Ter Tom Shippey é animador, ele é o maior tolkienista da história, conheceu Tolkien pessoalmente e auxiliou Peter Jackson nos filmes, ele busca sempre resguardar a memória de Tolkien e garantir que não saiam daquilo desejado pelo autor, ver ele na equipe nos traz tranquilidade quanto às adaptações. Eu, particularmente prefiro que não façam muito funfics inimagináveis com as histórias do Professor.

John Howe é um grande artista que sempre acompanhou os trabalhos tolkienianos, é um profissional excepcional e pode agregar à série muito valor. A equipe de Game Of Thrones é muito competente, mas, o estilo da série que os levou a chegar ao trabalho em questão é muito diferente, acho que Tolkien não iria gostar de GOT, e dessa ideia de combater os males menores e ignorar um mal dominante. As possíveis cenas de pornografias exageradas e violência dentro do Legendarium também preocupa muitos fãs, não seria algo desejado pela maioria.

Temos boas expectativa, será uma série baseada no Legendarium então estamos torcendo para que a memória do Professor seja preservada juntamente com seus ideais.

11 – Quais obras, se é que há como escolher, que vocês consideram as mais primorosas deste autor?

Essa é a pergunta que eu me faço frequentemente e não sei responder. Costumo dizer que a história do próprio Tolkien é melhor que as histórias que ele criou, amo ler suas cartas. Mas, eu diria, se tivesse mesmo que escolher, acredito que é O Silmarillion, o trabalho de uma vida, tudo que Tolkien fez, foi preparando o terreno para mostrar ao mundo essa obra, que é a essência de todo o resto.

12 – Defina Tolkien em uma frase.

“Cada época é salva por um pequeno punhado de homens que têm a coragem de não serem atuais.” G. K. Chesterton.

Carlos Alberto

Formado em Letras pela UFPE e fluente em inglês e espanhol com certificados internacionais em ambas as línguas. Escreve artigos sobre literatura , educação, cinema e política. Palestrante e debatedor dos temas já mencionados.

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