
“O caminho não é a esquerda”
(A Caverna do Dragão – O Jardim de Zinn)
Famoso clássico dos anos 1980 e 1990 a série animada infantil A Caverna do Dragão (Dungeons & Dragons) é baseada em jogo homônimo com co-produção para a TV da Marvel Productions e da TSR, sendo inicialmente transmitida pela CBS.
Classificado como fantasia, o desenho animado narra a história de seis amigos que se perdem e, subitamente, vão parar em um lugar hostil onde vivenciam toda sorte de entraves enquanto tentam encontrar o caminho de volta. Eles contam com uma ajuda inesperada na jornada: o sábio Mestre dos Magos (Dungeon Master), que dota cada um dos jovens de um instrumento mágico e fornece instruções de como devem proceder a fim de trilhar o caminho mais seguro para voltar para casa.
Em breves linhas, toda a série gira em torno da seguinte situação: o grupo se dá conta de que está em um local perigoso e repleto de pessoas duvidosas. Eles desejam retornar para a casa. Ora, a casa é de um simbolismo espetacularmente relevante. Casa representa as coisas como elas eram antes, estrutura, história, memória, registros, tradições, costumes, crenças, valores. Intrinsecamente ligada a ela está a idéia de lar, que carrega uma semântica mais afetiva, porém igualmente significativa: segurança, proteção, estabilidade, paz, abrigo, refúgio, acolhimento e ternura. Casa é a imagem mais rica que poderia ser usada uma vez que traz o simbolismo da psiquê (Carl Jung e Gaston Bachelard), é símbolo do processo de individuação/ desenvolvimento psíquico (Jung), um valor vivo e o verdadeiro cosmos (Bachelard). Ocorre que no caminho os jovens deparam-se com obstáculos e muitos inimigos, e sucessivamente acontece algo e o grupo não consegue manter o foco, eles desviam-se de seus objetivos, da meta, qual seja “voltar para a casa” porque se distraem no caminho, por vezes, sob a nobre justificativa de caridade, generosidade, solidariedade, fraternidade, isto é, para ajudar pessoas que estão precisando, muitas vezes, estratégias dos inimigos.
Outro fator é que os jovens demonstram confusão acerca de qual direção seguir – se devem ir para esquerda ou direita; seguir em frente ou retroceder. O Mestre dos Magos bem que tenta ajudar, no entanto, ninguém do grupo parece conseguir entender verdadeiramente o que é dito e seguir as instruções. O comentário “o que ele quis dizer com isso?” é recorrente.
Hank: Sem enigmas! Diga-nos diretamente.
(Episódio – O Cemitério do Dragão)
Hank: Mestre dos Magos… O que acontece agora?
Mestre dos Magos: Isso é com você.
(Episódio – O Cemitério do Dragão)
Mestre dos Magos: Para voltar para casa, um de vocês terá que estar mais errado do que certo… Pois somente o coração pode levar vocês de volta.
(Cidadela da Sombra)
A fala do Mestre dos Magos é, certamente, o ponto alto. O Mestre fala para sábios ou aprendizes de sábios, não são discursos de compreensão literal, são frases para reflexão e análise, muitas vezes, em forma de enigmas e adivinhações. Ele pretende que os jovens pensem, raciocinem e decidam-se por si mesmos sobre quais decisões devem tomar, e mais importante, qual caminho seguir a fim de atingir a meta de encontrar o caminho de volta.
Eric: O que você está esperando? Apenas nos aponte o caminho para casa!
Mestre dos Magos: Receio que não seja assim tão fácil.
(Episódio – A Bela e a Fera do Pântano)
Episódio bastante simbólico – O Jardim de Zinn – traz a presença de falsos Mestres dos Magos que surgem entre a Floresta Escura e o Vale da Fumaça, que não fosse revelarem-se teriam convencido a turma de que se tratava do autêntico mestre, uma possível retração de que as aparências podem ser enganosas, e que, às vezes, é de fato difícil diferenciar o verdadeiro do falso. Em tempos de Fake News a proposta parece muito contemporânea.
Ainda no memorável episódio, uma frase chama atenção –“O caminho não é a esquerda” – que é entendida ipsis litteris pelos jovens, liderados por Hank, como: “ele quer dizer que devemos ir pela direita”. Em uma análise neurolingüística, observa-se claramente a falta de maturidade lógica e lingüística do grupo. Considerando que são 4 os pontos cardeais, então, há ao menos 2 outros caminhos. Ampliando o campo de visão para além de pontos cardeais, temos os colaterais e os subcolaterais, facilmente verificáveis por uma rosa dos ventos ou mesmo uma bússola, algo que o mágico (Presto) poderia fazer aparecer (ainda que não exatamente com rapidez). Entretanto, o que se passa é Hank traduzindo para os companheiros qual direção seguir. Todos seguem Hank, sem questionamentos ou ponderações. Hank tirou conclusões precipitadas como em tantos outros episódios. A ansiedade (talvez um transtorno sofrido por todos os amigos) e a pressa (falta de prudência e temperança) em tomar decisões os leva a equívocos. As poucas ocasiões em que há questionamentos, o personagem Eric é quem os traz, porém ele nunca é levado em consideração por ter fama de “estraga-prazeres”, “mal-humorado”, “mimado” e “reclamão”; de qualquer maneira, Eric parece não conseguir acertar em suas iniciativas e falha como líder: os amigos sempre seguem Hank. Registre-se que tanto Hank quanto Eric têm a mesma idade (15 anos) e são os mais velhos da turma.
Outro episódio homérico e que deixou muito intelectual de cabelo em pé por todas as entrelinhas e mensagens, segundo alguns, nada subliminares é “O Tempo Perdido” em que militares são seqüestrados e um dos reféns é um piloto da Força Aérea dos Estados Unidos. Um dos personagens chega a teletransportar-se para a Segunda Guerra Mundial a fim de capturar um piloto. O objetivo é evidenciado no próprio capítulo em que é mencionado que seria preciso mudar a história do planeta. Tudo certo, um momento Doctor Who que parece ter sido escrito muito mais para elucubrações adultas do que para entretenimento de crianças para as quais o desenho era indicado, notadamente considerando que a faixa-etária dos protagonistas era de 08 a 15 anos.
As Forças Armadas são mencionadas em outros capítulos, uma referência clara ao que se espera delas: socorro e salvamento.
Presto: Traga-nos a Marinha dos Estados Unidos!
(Episódio – Missão do Guerreiro Esqueleto)
Salienta-se que houve censura a episódios da série, já que a turminha perdida cogitou que a única solução possível seria matar o inimigo (Vingador), o que também nos aponta um dado curioso: o grupo não estaria raciocinando em uma linha inteligente, construtiva; e sim em uma linha destrutiva. Psicologicamente falando, quando se tem um problema, o que deve ser feito? Análise, apresentação de estratégias, elaboração de plano e metas, diálogo; ou seja, a construção de uma linha de ação. No caso em tela, a solução para o problema seria eliminar (matar), o que nos conduz imediatamente para uma questão puramente filosófica de moral e ética – e ainda há quem diga que a Filosofia é pouco importante…
O que impede o ser humano de “matar” o problema? Muitas vezes nada. Sem moral e ética, “É Fácil Matar” (Murder is Easy, 1938, Agatha Christie), seja outrem (homicídio), seja a si mesmo (suicídio), seja um povo inteiro (genocídio).
De volta à Caverna, é certo, e exaustivamente repetido a cada capítulo, que a turma quer voltar para casa, eles estão cansados e não agüentam mais viver daquele jeito. Lamentavelmente, eles não conseguem se controlar. Eles mesmos se sabotam cada vez que deixam levar-se por todo tipo de distração que surge no caminho.
É inevitável a associação do comportamento deles com visões de Carl Jung, James Mollis, Edward Bach e Joseph Campbell. É um quadro emocional muito explícito. As sombras são colocadas em evidência e o comportamento prolifera dúvidas que geram medo e o medo paralisa: “não entendi o que ele disse”, “ele não explicou isso” e “por que ele não disse isso antes”… Eles estão perdidos e, continuam perdidos (psico e emocionalmente): eles não sabem para onde ir nem mesmo quando acham que sabem. E, quando estão quase lá… Eis que surge algo e… “vamos ver isso e depois voltamos para casa”. Em meio a atos falhos (lapsos verbais e comportamentais) eles perdem oportunidades.
Em várias circunstâncias, o grupo se divide e cada qual decide seguir um caminho que afirma ser o melhor sem apresentar, no entanto, nenhum argumento sensato, nenhum planejamento ou plano de ação. Ao invés de se manterem unidos na missão, em prol de uma causa em comum, separam-se. Com essa avalanche de desinteligências o resultado não poderia ser diferente: eles não conseguem encontrar o caminho e aguardam que alguém (o Salvador, o herói) apareça para milagrosamente o fazer.
“E agora, como vamos fazer para voltar para casa?” e “Quem vai nos levar de volta?” são linhas repetitivas na série.
Presto : Onde está o Mestre dos Magos quando você precisa dele?
Eric : Esqueça o Mestre dos Magos precisamos de uma equipe da SWAT!
(Episódio – Servo do Mal)
O último episódio “Réquiem” causou uma polêmica daquelas. Os próprios criadores teriam se desentendido; outra versão relata que a produtora não teria aceitado o final apresentado. Por fim, o que foi a público definitivamente constituiu um grand finale de tirar o fôlego. Além de os terríveis malvados (Vingador e Karena) serem filhos do Mestre dos Magos (o que nos remete a temas de cunho religioso) a turminha é colocada à beira de um abismo, onde lhes é dado o livre arbítrio: voltar ou ficar e tentar salvar o lugar.
O final indubitavelmente espetacular causa revolta a muitos fãs do desenho até hoje. Cadê o final? (*) É a pergunta de muitos. Muitos que como os seis amigos (de diferentes idades, classes sociais, etnias e estilos…) não souberam analisar o discurso, não tiveram maturidade para refletir sobre os acontecimentos.
Mestre dos Magos: Vocês estão livres para retornar ao seu mundo agora, se desejarem. Ou vocês podem ficar aqui. Ainda há muito mal a ser combatido e muitos desafios a enfrentar. A escolha, meus filhos, é de vocês.
(Episódio Réquiem)
O grupo estava em seu lugar. Perdeu-se. Mergulhou no caos onde violência, mentira, traição e seres horripilantes habitam. Eles não querem aquela realidade. Eles querem voltar para onde estavam, para a estabilidade, para a tranqüilidade, para a normalidade. Entretanto, eles não conseguem sair daquela realidade que mais se assemelha a um círculo vicioso, e, de fato, algumas vezes, eles andaram em círculo. Eles não conseguem ter discernimento para compreender e decifrar as recomendações do Mestre, não têm força moral (fortaleza) para não se desviar do caminho, são sugestionáveis, inseguros e carecem de auto-confiança. Por mais justos, corajosos e benevolentes que eles sejam, a prática das virtudes morais (cardeais) mais basilares como prudência e temperança está ou é embaçada.
A política adotada pelo líder-mor Hank não frutifica, e na verdade ele chega a confessar que não queria exatamente ter de ser o líder (Hank responde a Eric: eu, que líder que nada!). O único a confrontá-lo é justamente Eric, que deseja assumir a posição de liderança, mas que, no entanto, não é capaz de ser empático o suficiente para tal posição.
Todos os seis amigos apresentam-se desprovidos de disciplina e sabedoria, não conseguem travar um bom diálogo (eles culpam um ao outro, criticam-se, voltam-se uns contra os outros, atacam-se habitualmente –“Você não tem cérebro“… “Essa é a primeira coisa inteligente que você disse essa semana“… – e desperdiçam um tempo precioso em contendas, tempo em que poderiam estar juntos delineando um plano razoável) e tampouco alvitram políticas eficazes para colocar todos no caminho almejado. Finalmente, os “líderes” demonstram-se tão pouco centrados e tão avoados quanto os “liderados”.
Os discípulos do Mestre deixam muito a desejar. A falta de harmonia e de confiança entre eles causa desvio de planejamentos, falta de empenho e disposição. O propósito real perde-se em meio ao grupo disperso e alheio demais para manter o foco.
Hank: Eric, nós temos que ficar juntos.
Eric: Por que, Hank? Nós sempre ficamos juntos e isso não nos levou para casa.
(Episódio Réquiem)
Eric: Hank, você é o líder, o que fazemos?
Hank: A única coisa que podemos fazer – correr!
Eric: Eu poderia pensar nisso!
(Episódio – o Tesouro de Tardos)
Em “O Portal do Amanhecer” nem mesmo a quase morte do Mestre dos Magos parece “abalar” a turma. Prestes a ser atingido, é ele, o Mestre dos Magos que ordena a Hank, o que fazer:
Mestre dos Magos: Guerreiro, use o seu arco!
Como um guerreiro, líder de seu grupo, poderia não saber o que fazer?
A Caverna do Dragão como alegoria política é tão simples e óbvia, e tão moderna, que assusta: como ninguém viu isso antes? Caverna do Dragão é uma caricatura em toda a sua estrutura com uma sugestão profunda de análise discursiva, background filosófico e inteligência emocional.
A retórica político-filosófica da Caverna do Dragão atraiu a atenção de acadêmicos em vários países. Professores de Harvard lideram pesquisas e investigações sobre o assunto. Não são poucos os estudiosos que apontam para a Caverna do Dragão como um tesouro educacional e fonte de conhecimentos filosóficos.
A Caverna do Dragão (Dungeons & Dragons), o jogo, foi testado pela primeira vez nos anos 1970. Criado por Gary Gygax e Dave Arneson, foi lançado pela primeira vez em 1974, baseado em jogos de guerra, com o objetivo de que os jogadores aplicassem táticas e estratégias de guerra às suas vidas pessoais, o que justificaria plenamente a necessidade de mediar situações políticas, resolver quebra-cabeças, desenvolver pensamento crítico, melhorar a compreensão matemática básica, aprender a resolver problemas, cumprir missões, seguir comandos e trabalhar em equipe.
O fascínio pela Caverna do Dragão está exatamente neste ponto: ele é muito mais profundo do que se pode imaginar, alicerçado em poderosas raízes filosóficas equiparadas a discursos de Sócrates e Aristóteles, com pitadas de Cosmologia. O entusiasmo dos acadêmicos se funda em que o ensino da filosofia para as crianças e adolescentes não é somente um fator motivador, mas um fator que as prepara para a vida (e muitas vezes também para a vida profissional) e, em alguns casos, pode salvar vidas. Um indivíduo bem preparado, com conhecimentos aprofundados em ética e metafísica, por exemplo, teria argumentos robustos e a eloqüência quando confrontado, não se deixando manipular tampouco sendo arrastado para vícios ou tentativas de suicídio.
Christopher Robichaud, professor de Ética, Filosofia Moral, Filosofia Política, Epistemologia Social e Políticas Públicas na Harvard Kennedy School of Government e doutorando em Filosofia, relata que os artigos analisam a Caverna do Dragão por meio da Metafísica, Ética e Existencialismo. Foi com base nesses estudos que ele publicou Dungeons & Dragons and Philosophy, obra em que ele pretende demonstrar a carga filosófica a que se está exposto ao se ter contato com a Caverna do Dragão, o que seria muito construtivo. Segundo Robichaud, Caverna do Dragão traz idéias filosoficamente persuasivas que versam desde a natureza do livre arbítrio e da metafísica da identidade pessoal à moralidade da criação de ficções e do papel da amizade.
Mestre dos Magos, o filósofo
Aquele que tem a resposta e não a compreende é na verdade como aquele que nunca soube a resposta.(Episódio O Traidor)
Às vezes olhando para trás vocês podem ver mais claramente o caminho que está adiante. (Episódio O Olho do Observador)
O conhecimento será o seu escudo. (Episódio O Dia do Mestre dos Magos)
Os maus feitos retornam à sua fonte. Eles sempre completam o círculo, e o mal deles nunca terminará até que o círculo seja quebrado. (Episódio Missão do Guerreiro Esqueleto)
Quando tudo parecer perdido procurem o que reflete o que são e aquilo que mais desejam. (Episódio A Caverna das Fadas Dragão)
Todas as coisas têm um propósito, inclusive a sua presença aqui. (Episódio A Noite Sem Amanhã)
Outros dois ilustres professores – Ethan Gilsdorf (jornalista, memorialista, crítico, poeta e colunista regular do New York Times, Boston Globe e Washington Post onde já publicou muitos artigos, ensaios, artigos de opinião e resenhas sobre artes, cultura, jogos e viagens; e é autor de vários poemas em revistas e antologias literárias) e Jonathan Zittrain (Professor de Direito da Harvard Law School e da Harvard Kennedy School of Government, e Professor de Ciência da Computação da Harvard School of Engineering and Applied Sciences) têm tanto interesse educacional pela Caverna do Dragão que resolveram promover um debate: Dungeons & Dragons, life and the Law, em que demonstram como as situações apresentadas na Caverna do Dragão podem servir de modelo para a vida e para uso no Direito, inclusive em tribunais.
Assista à palestra completa clicando aqui.
A controvérsia em relação à Caverna do Dragão continua: “não era para ser para crianças?”; todavia, claro está que a importância do ensino da Filosofia fica soberanamente evidenciado em todas essas investigações realizadas pelos mais doutos acadêmicos de renomadas universidades…
Algumas vezes o melhor jeito de convencer alguém que está errado é deixá-lo seguir seu caminho. (Mestre dos Magos).
Leitura recomendada:
Christopher Robichaud. William Irwin (Editor). Dungeons and Dragons and Philosophy: Read and Gain Advantage on All Wisdom, Wiley-Blackwell Publisher. 2014.
Jon Cogburn, Mark Silcox (Editor). Dungeons and Dragons and Philosophy: Raiding the Temple of Wisdom. Open Court Publisher. 2012.
(*) Houve rumores de que havia um final baseado no jogo, onde o grupo havia caído no inferno, e que, portanto, jamais teriam como sair de lá. (O que não deixa de compor uma possível metáfora política também …).
Short Essay on Dungeons & Dragons. Dungeons & Dragons as a Political Allegory – Clarissa Xavier Machado. 2019.
Crédito da imagem: Soul Geek