
Apresentamos ao leitor uma entrevista com uma grande admiradora da obra de C.S LEWIS, uma pesquisadora acadêmica com uma carreira de incansável dedicação, trabalho intenso e detentora de uma inteligencia que vai além do que os numerosos títulos acadêmicos apontam: Gabriele Greggersen.
Graduada em Pedagogia, mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, com pós-doutoramento na área de História das Mentalidades. O currículo encanta e fascina e pode ser lido em detalhes no site C.S Lewis por Gabriele Greggersen onde há uma serie de artigos sobre Lewis. A entrevista foi realizada para aprofundar alguns pontos da Obra master do autor : As Crônicas de Nárnia, trabalhadas no site através de três artigos: Um olhar sobre o Mundo Mágico de Lewis- Introdução ,Um Olhar sobre o mundo mágico de Lewis- A construção ficcional e Um Olhar sobre o mundo mágico de Lewis- A intertextualidade bíblica em as crônicas de Nárnia.
Espero que o Leitor saboreie a entrevista e a tenha como mais um meio de ir para as terras de Nárnia.
O que torna complexo traduzir a obra As Crônicas de Nárnia ao português?
GG – Bem, em primeiro lugar, o que torna um desafio traduzir Lewis é o contexto histórico e cultural de sua pessoa. Ele, além de ser do século retrasado (nasceu em 1898, finalzinho do século XIX), teve uma formação e viveu em um meio bastante academicista, usando uma linguagem formal bastante rebuscada, num inglês antigo. Sua erudição em línguas e pensadores é outro fator relevante, fazendo com que ele cite muitos autores desconhecidos no Brasil e em línguas as mais diversas, desde o inglês antigo, até o grego e o latim.
Em seguida, temos o seu estilo, que é bem-humorado, cheio de ironia, expressões idiomáticas e metáforas, que exigem do tradutor, além de capacidade interpretativa, muita habilidade de transposição de sentidos.
Isso tudo exige que o tradutor tenha alguma familiaridade com o autor, do contrário, cometerá erros que tornarão a compreensão da leitura muito complicada para o leitor brasileiro.
Qual a sua opinião sobre as traduções feitas para a língua portuguesa?
GG – Em geral, as mais antigas são precárias, realizadas por voluntários não profissionais. Já as Crônicas de Nárnia foram na sua maior parte, traduzidas por um erudito, Paulo Mendes Campos, da Academia Brasileira de Letras, que se sentiu muito à vontade para imprimir aos personagens os traços que fazem parte de sua própria visão de mundo e para deixar trechos inteiros de fora. Fiz parte de uma banca no campo de tradução que fez a análise de corpus da tradução desse erudito e que constatou, por exemplo, que a figura de Aslam da versão brasileira é bem mais severa e grave do que deixa entrever o original.
Os esforços da Martins Fontes em revisar as traduções já foram elogiáveis, mas a Thomas Nelson está com um projeto louvável, em pleno vapor, de novas traduções das obras de Lewis e pretende chegar às obras completas, traduzidas por profissionais que entendem de Lewis.
Quais seriam as principais semelhanças e diferenças entre As Crônicas de Nárnia e O Senhor dos Anéis?
GG – Se é que podemos chamar As Crônicas de Nárnia alegóricas, elas o são mais do que O Senhor dos Anéis. Vamos falar mais sobre isso na próxima questão. É possível, por exemplo, traçar paralelos mais claros com os conteúdos bíblicos, por exemplo. A simbologia é mais plástica e rica do ponto de vista da interpretação e de intertextualidade, que é mais complexa e difícil no caso do obra-prima de Tolkien. Para isso, a riqueza de minúcias e de criatividade de O Senhor dos Anéis chama bem mais atenção. Tanto que existem estudos que aprofundam seus aspectos históricos, geográficos e linguísticos. Tolkien colocou em prática tudo o que ele pregava sobre a capacidade humana de “sub-criação”, ou seja, de imitação humana da habilidade criativa divina ao criar o mundo, inventando mundos paralelos com línguas, história e geografia próprios. Então, do ponto de vista hermenêutico e exegético, O Senhor dos Anéis é mais complexo e rico em detalhes, enquanto as Crônicas são mais simples, falando diretamente de coisas cotidianas e que dizem respeito ao homem comum. Tanto que uma criança é capaz de entender o “espírito da coisa” das Crônicas, o que é mais raro no que diz respeito ao Senhor dos Anéis, que até para um adulto não é de compreensão fácil.
Muitos consideram As Crônicas de Nárnia como uma alegoria, mas outros não a compreendem como tal. Como a senhora vê essa questão?
GG – Tudo vai depender do que se entende por alegoria. Se entendemos alegoria como um gênero em que o uso de metáforas ou figuras de linguagem em geral, simbologias e imagens é predominante, permitindo traçar paralelos com a realidade e outras obras, certamente As Crônicas de Nárnia são alegóricas. Mas Lewis tinha uma compreensão mais profunda que diz respeito à moral da história. Enquanto um conto de fadas, por exemplo, tem um final aberto e uma infinidade de “lições” que se possa extrair, a fábula, por exemplo, tem uma moral embutida, que normalmente vem ao final da história. Assim, As Crônicas de Nárnia se aproximam mais dos contos de fada e menos das fábulas, que são claramente alegóricas, e não se limitam ao uso de animais personificados, por serem extremamente democráticas em sua moral. É possível ler os livros e ver os filmes sem estabelecer qualquer relação com o cristianismo, por exemplo, extraindo suas lições universalizáveis para qualquer tipo de pessoa e crença.
Então, não se pode dizer que Edmundo é Adão, ou que Aslam é Cristo, de forma categórica. O que acontece, antes de um procedimento alegórico, é um processo de suposição, como Lewis mesmo explicava que as Crônicas deveriam ser entendidas. “Suponha que existam universos paralelos e um deles seja como Nárnia. Como se daria a história de encarnação e da paixão nesse mundo? ” Foi essa a pergunta que Lewis se fez ao escrever as histórias e, não, “como impor uma visão de mundo cristã a uma história aparentemente inofensiva? ”
Alguns críticos acusam C.S Lewis de sexismo e alguns cristãos o acusam de propagar o paganismo. Qual a sua opinião sobre isso?
GG – Temos duas perguntas distintas aqui. Vou começar pelo sexismo. É preciso considerar, antes de tudo, que devemos evitar o anacronismo nesse tipo de questão. Veja, Lewis viveu há mais de cem anos e certos temas não eram sequer registrados no debate público. Está certo que o movimento feminista já estava efervescendo, mas ele ainda estava longe de certas realidades como as quatro paredes antigas de Oxford, um local ainda pouco frequentado por mulheres.
É preciso considerar ainda que Lewis perdeu a mãe e não tinha irmãs e que se casou tardiamente. Está certo que ele cuidou de uma senhora idosa e sua filha a vida toda, mas isso já foi na idade adulta.
Então, dentro desse contexto, pode ser que algumas figuras de Lewis, como a feiticeira branca e a rainha de Perelandra e outras figuras sejam preconceituosas aos nossos olhos contemporâneos. Mas é preciso considerar que Lewis sempre usa dois personagens principais nas Crônicas, um menino e uma menina; ou meninos e meninas, como em O Leão, a feiticeira e o Guarda-Roupa, e que as meninas assumem traços de heroísmo e mérito do mesmo jeito e até mais do que os meninos. E a grande heroína de todas as histórias, aquela que tem um relacionamento mais íntimo com Aslam, é menina (Lúcia). Fora que em A Última Batalha, o mal é representado por personagens masculinos.
E, extrapolando as Crônicas, temos também a obra mitológica Até que tenhamos rostos, em que Lewis é uma narradora-mulher, que também é a heroína da história. Ele escreveu essa história depois de casar-se com Joy, pelo que demonstra o quanto aprendeu sobre as mulheres com ela.
Temos que levar em conta também que Lewis se correspondia com mulheres, o que fica claro em Cartas a uma Senhora Americana, que demonstra toda a sua sensibilidade para com os problemas e aflições das mulheres e sua capacidade de se solidarizar com elas. Sem falar nas muitas palestras que deu a públicos exclusivos de freiras.
Portanto, acho que chamar Lewis de sexista demonstra, no mínimo, desconhecimento de sua vida e obra.
Quanto à segunda questão, que é uma acusação mais frequente e até apaixonada por parte de alguns opositores de Lewis, que denunciam traços de ocultismo em sua obra, tenho que considerar o seguinte: Jesus jamais nos disse que deveríamos viver num mundo expurgado de tudo o que lembra o paganismo. Estamos no mundo, embora não sejamos dele e temos que aprender a conviver com ele. Mesmo porque, isso seria impossível de fazer, já que temos traços de paganismo por todos os lados em nossa cultura, a menos que queiramos adotar um estilo de vida como os Quakers, por exemplo.
Na verdade, sempre que, no Antigo Testamento, Deus desmascara o culto aos ídolos, Ele usa de ironia, mostrando o ridículo em que o povo estava caindo, adorando pau e pedra que não têm poder algum.
O uso que Lewis faz das figuras pagãs é um uso profissional de quem conhece bem a literatura e os gêneros literários. Na verdade, ele usa do mesmo humor de Deus no AT, mas que muita gente não entende. Ele diz: “Vejam a brincadeira que faço com as imagens e desmistifiquem-nas”.
Tolkien até criticava Lewis por isso: não pelo uso de imagens pagãs, ele era esclarecido o suficiente para não levantar essa lebre, mas pela “salada” que Lewis fez com as figuras, misturando o bestiário com figuras gregas, romanas e nórdicas. Até o Papai Noel, um mito de origens cristãs e pagãs, entra no jogo! Mas esse efeito era precisamente o que Lewis pretendia surtir.
Então, Lewis não propaga o paganismo, ele usa das figuras pagãs para dizer: “olhem, há aqui, no meio dessa confusão, uma estátua ao ‘deus desconhecido’, que tal deixarmos de brincadeira e levarmos a sério esse Deus único? ”